Marighella: dois poemas inéditos
Mário Magalhães
O texto abaixo foi publicado originalmente no Blog da Companhia.
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Por Mário Magalhães
No começo da noite da próxima terça-feira, 4 de novembro, a tocaia em que agentes da ditadura fuzilaram o revolucionário baiano Carlos Marighella completará 45 anos. Numa rua escura paulistana, ao menos 29 beleguins do Departamento de Ordem Política e Social, armados até os dentes, assassinaram o guerrilheiro de 57 anos que não portava nem um canivete.
O tempo esclareceu as circunstâncias da morte de Marighella, narrada em pormenores na biografia que a Companhia das Letras lançou no finzinho de 2012. Com o ressurgimento da democracia no Brasil, a União reconheceu duas vezes que em 1969 ocorrera assassinato — e não confronto — e pediu desculpas à família do veterano militante. Seus matadores, embora identificados, nunca foram punidos.
Dois obstáculos conspiraram para tornar ainda maior o desafio de reconstituir a trajetória do antigo líder estudantil, constituinte, deputado, dirigente comunista e guerrilheiro declarado, em 1968, “inimigo público número 1”: determinada historiografia intolerante buscou eliminá-lo da memória nacional, e ele próprio, para sobreviver aos perseguidores, empenhou-se em apagar as pegadas.
Nos últimos anos, Carlos Marighella (1911-1969) inspirou a arte. Isa Grinspum Ferraz dirigiu o documentário Marighella, e Daniel Grinspum, o clipe “Mil faces de um homem leal”, com os Racionais. A música do vídeo havia sido composta por Mano Brown para o filme de Isa. Caetano Veloso reverenciou o conterrâneo com a canção “Um comunista”. O ator Wagner Moura se prepara para estrear na direção de longa-metragem adaptando para o cinema a biografia que eu escrevi. A produtora O2, de Fernando Meirelles, é parceira de Wagner na empreitada.
A vida fascinante de Marighella — goste-se ou não dele, de suas ações e de suas ideias — não se limitou às pelejas da revolução. Desde criança, o filho de italiano e de filha de escravos se dedicou à poesia. Ganhou fama em Salvador aos dezessete anos, não em virtude das querelas da política, mas ao responder em versos rimados uma prova de física no ensino médio.
Aos dezenove, calouro do curso de engenharia civil, fantasiou uma odisseia por Lavras Diamantinas, Jeremoabo e Canudos, terras baianas, e o Saara africano. Concluiu:
Andei como o diabo! Enfim… eis-me de novo aqui:
Quero ver se descubro se já me descobri.
O mais renitente adversário de Marighella na Bahia foi Juracy Magalhães, interventor (governador nomeado) do Estado quando o estudante Marighella foi preso pela primeira vez. Corria o mês de agosto de 1932, e o universitário acabou encarcerado com cinco centenas de colegas ao participar de um protesto. Na cadeia, bolou uma versão de “Vozes D’África”, o clássico de Castro Alves.
“Vozes da mocidade acadêmica” principia assim:
Juracy! Onde estás que não respondes!?
Em que escusa latrina tu te escondes,
Quando zombam de ti?
Há duas noites te mandei meu brado,
Que embalde desde então corre alarmado…
Onde estás Juracy?
Fecha:
Basta, senhor tenente! De teu bucho
Jorre através das tripas
Um repuxo de Judas e sandeus!
Há duas noites… eu soluço um grito…
Escuta-o, conclamando do infinito
‘À morte os crimes teus!’.
Reproduzi na biografia numerosas poesias de Marighella, das líricas às eróticas. Para assinalar os 45 anos de sua morte, compartilho aqui no Blog da Companhia dois poemas inéditos do revolucionário poeta.
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Em maio de 1939, Marighella foi preso pela polícia política do Estado Novo, iniciando um período de quase seis anos de cana. No quarto onde o militante clandestino vivia em São Paulo, os tiras encontraram dois sonetos de autoria de certo “Dr. Carijó”, como Marighella os assinara.
Os poemas tripudiavam sobre os ativistas da AIB (Ação Integralista Brasileira), fascistoides que haviam sido colocados fora da lei pelo governo do ditador Getúlio Vargas, chamado de “Gegê” por Marighella. Os integralistas eram espinafrados como “galinhas verdes” pelos contendores ideológicos. Seu líder era o jornalista e escritor Plínio Salgado.
Um dos sonetos se intitulava “Verde ilusão”. Garimpei-o no processo judicial preservado pelo Arquivo Nacional:
Olá! Meu caro Plínio, estás salgado
Com a baiana mestraça do Gegê!
Parecias o Príncipe Esperado
E agora, de AIB, és ABC!
Eu te supunha cabra quilotado
E és mais arisco que um zabelê!
Hoje, que o teu balão está furado,
Que fazes? Ninguém te ouve, ninguém te lê?
Quem dantes via a crista que sustinhas
Juravas que eras trunfo e bambambão,
Peso pesado, braço, trinca-espinhas!
Calcula que tremenda decepção
Quando o femeaço verde dos galinhas
Viu que tu não és galo e sim… capão!”
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O jornalista Claudio Leal me enviou em dezembro de 2013 um e-mail com o assunto “Marighelliana” e contou: “Topei com algo que pode lhe interessar. É um poemeto de circunstância de Marighella, dos tempos do veranico legal dos comunistas, em 1947, pouco antes da cassação do registro do PCB. Encontrei-o num caderno de mensagens de uma ex-auxiliar da Câmara Federal chamada Helena Prado”.
O generoso Claudio, um dos maiores talentos da sua (jovem) geração, fotografou os versos manuscritos de Marighella — a letra inconfundível era mesmo dele. Observou: “Pelas mensagens [de deputados como Nelson Carneiro, Jorge Amado e Marighella], depreende-se que Helena era loira e superlativamente bonita”.
O deputado federal Marighella versejou, em 28 de janeiro de 1947:
Cantar o que é belo, sim,
mas numa quadra pequena,
que tem somente por fim
falar do seu nome, Helena.
Mesmo assim…
Muita gente com certeza
afirmará que os “comunas”
não rendem culto à beleza.
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Mário Magalhães é jornalista, blogueiro do UOL e ex-ombudsman da Folha de S. Paulo. Recebeu 25 prêmios jornalísticos e literários no Brasil e no exterior. É autor da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 2012). A obra foi agraciada com o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio Brasília de Literatura, o Prêmio Botequim Cultural, o Prêmio Direitos Humanos e o Prêmio Casa de las Américas. Seu próximo livro, cujo tema ainda é segredo, sairá pela Companhia das Letras em 2016.