Dez anos depois, promessa cumprida: não esqueci o Serginho
Mário Magalhães
Faz dez anos, completados anteontem.
Na noite de 27 de outubro de 2004, o zagueiro Serginho teve uma parada cardiorrespiratória no Morumbi, agonizou no gramado e morreu.
Em uma década, soube-se mais sobre a tragédia do Serginho.
A ESPN acaba de veicular uma série alentada recordando o defensor do São Caetano (para ver, basta clicar aqui).
Da minha parte, promessa cumprida: sempre que surge um zagueirão valente que vai na bola como um famélico num prato de comida, lembro-me do jogador que tombou em campo, para nunca mais.
Reproduzo abaixo a coluna que escrevi na época.
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A vida não vale nada
Legendário manager, técnico e jogador, o escocês Bill Shankly um dia filosofou, como ontem lembrou Juca Kfouri no ''Lance!'': ''Algumas pessoas acreditam que o futebol é uma questão de vida e morte. Estou muito desapontado com essa atitude. Posso lhe assegurar que é muito, muito mais importante que isso''.
Na noite de quarta-feira, o futebol foi morte para Serginho. No 14º minuto do segundo tempo, sem ter se chocado com ninguém, o zagueiro desabou sobre as pernas do são-paulino Grafite. O médico do São Caetano fez respiração boca a boca. O do São Paulo, massagem cardíaca.
No gramado do Morumbi, os jogadores pularam, choraram, clamaram por socorro. Quando o zagueiro se foi na ambulância, abraçaram-se todos para rezar. O estádio inteiro gritou: ''Serginho! Serginho! Serginho!''.
A agonia se deu em um palco no qual não se supunha que viesse a ocorrer, a despeito de episódios recentes. A morte, pensamos, é para velhos, e não crianças e jovens. Para doentes, e não para quem parece gente sã. Para fracos, e não superatletas.
Simulacro da guerra, na qual a morte é do jogo, o futebol celebra a vida. Pontuamos a memória com gols e frangos, triunfos e fracassos. No ''mata-mata'', quem morre renasce amanhã. ''Gosto da vida, não quero morrer'', disse Parreira antes da semifinal da Copa-94. A equipe que morre na praia tem a eternidade para dar a volta por cima. A ''morte súbita'' não representa o fim.
A morte de Serginho não é metáfora. Uma das heranças que sua tragédia pode deixar é uma revolução nos primeiros socorros nos estádios. Recomenda-se serenidade. O jornalismo esportivo mal domina rudimentos da ortopedia. Imagine de cardiologia e neurologia. Lições de medicina são para médicos. Jornalistas não são juízes, portanto não julgam. Essencialmente, informam. Sobram perguntas, que começam a ser respondidas em boas reportagens.
Divulgou-se que, consciente de problemas no coração, Serginho teria firmado um termo se responsabilizando pelo que lhe acontecesse. Um médico não deveria vetar, conforme o diagnóstico? Seria o caso? Washington, artilheiro e cardiopata, não assinou um documento assim?
O que move um atleta a arriscar a vida? Desconhecimento do risco? Foi o que houve com Serginho? Não somos nós que festejamos a paixão do centroavante do Atlético-PR pelo futebol? E o que leva um cartola a negar as alterações cardíacas relatadas por amigos do zagueiro? Uma canção cubana diz: ''A vida não vale nada''.
A vida de Serginho teve fim em noite de eclipse da lua. Ele completara 30 anos na semana passada. Era um bom jogador, protagonista da histórica ascensão do São Caetano. Formava na estirpe de lutadores que teve em Rondinelli, o Deus da Raça, um dos ícones. Para sempre, quando surgir um zagueirão valente que vá na bola como num prato de comida, haveremos de recordar: Serginho era assim.
(MM, ''Folha de S. Paulo'', 29 de outubro de 2004)