Há 80 anos, antifascistas expulsaram a extrema direita da praça da Sé
Mário Magalhães
Outro repeteco de post publicado meses atrás, para lembrar, pois o esquecimento é amigo da barbárie.
Oitenta anos neste mês de outubro de 2014.
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História: além de efemérides como os cem anos do começo da Guerra Mundial, os 60 do suicídio de Getulio Vargas e os 50 do golpe de Estado que depôs João Goulart, 2014 marca o aniversário de oito décadas do episódio que se tornou célebre como Batalha da Praça da Sé.
Em 7 de outubro de 1934, o Centro paulistano se transformou em palco de combate entre integralistas (os fascistoides brasileiros) e antifascistas, que os expulsaram.
Há cinco anos, recapitulei o entrevero, na reportagem “Sangue na praça da Sé'', publicada na “Folha de S. Paulo''.
Ei-la, na íntegra:
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Sangue na praça da Sé
''A batalha durou mais de meia hora'', datilografou o escritor Plínio Salgado. “O conflito durou seguramente uma hora'', cronometrou o jornal “A Offensiva'', que o próprio Plínio, chefe da AIB (Ação Integralista Brasileira), dirigia no Rio. O jornalista Mário Pedrosa ouviu de um camarada húngaro: “Foram quatro horas de ditadura do proletariado''.
Aos 95 anos de idade, Sara de Mello não se lembra do tempo por que a refrega se arrastou, mas recorda a frase do amigo Miguelzinho ao vê-la remexendo o bolso do casaco pouco antes do confronto: “Passa essa arma para cá''.
“Que arma nada'', ela conta ter respondido. “É a minha mão que está aí dentro.'' Ao contrário de companheiras como a atriz Lélia Abramo, Sara não ganhou revólver e recebeu ordem para se plantar na confluência da praça da Sé com a rua Direita, no centro de São Paulo.
“Anauê''
Naquela “tarde funesta e luminosa'' de 7 de outubro de 1934, como a descreveu o escritor Paulo Emílio Sales Gomes, logo se deflagraria o que se conheceria como Batalha da Praça da Sé: seis mortos e ao menos três dezenas de feridos graves no embate entre antifascistas e integralistas.
Os integralistas representavam a extrema direita, defensora de nacionalismo renhido, família, igreja e propriedade privada. Mimetizando fascistas italianos e nazistas alemães, formavam milícias, vestiam uniforme (verde) e proclamavam saudações (“Anauê''). No porvir, negariam identidade com os europeus.
Os antifascistas agregavam uma miríade de organizações de esquerda que viviam às turras entre si: stalinistas do Partido Comunista, trotsquistas da Liga Comunista Internacionalista, socialistas, anarquistas, sindicatos e adeptos de Miguel Costa, líder de rebeliões da década de 1920 -e pai de Miguelzinho, o amigo de Sara.
Para aquele domingo de 75 anos atrás, a AIB marcou uma celebração pelo segundo aniversário do Manifesto Integralista. Levou 10 mil seguidores, conforme cálculos de fontes diversas, à Sé e aos arredores.
Seus inimigos interpretaram a iniciativa como demonstração de força inspirada na marcha sobre Roma, ofensiva fascista de 1922 que impulsionou Mussolini ao poder. Mobilizaram-se para barrá-la.
Polícia rachada
O vínculo com a Itália fazia sentido também para um liberal, o magnata do jornalismo Assis Chateaubriand. Testemunha acidental -ele se escondeu em prédios da Sé para se proteger do fogo-, Chatô disse ter assistido em 1920, em Milão, a cena “absolutamente idêntica'': luta de rua entre fascistas e comunistas.
Abaladas pela crise econômica, as democracias liberais pareciam naufragar nos anos 1930. Demorariam a recuperar o leme da história. Os extremos alargavam influência.
Em julho de 1934, Getulio Vargas, de bom convívio com os camisas verdes, se transformara em presidente constitucional eleito pelo Congresso.
Na praça da Sé, como reflexo da polarização política, tomaram partido até os membros do aparato de segurança escalados para garantir a lei.
Os agentes das delegacias de ordem política e social combateram a tiros os antifascistas. Soldados da Força Pública dispararam contra integralistas.
A ação militar da esquerda foi coordenada por João Cabanas, antigo tenente da Força Pública. Ele dispôs atiradores em prédios da praça, notadamente o Santa Helena. Demolido em 1971, o palacete deu nome ao grupo de artistas que ali pintavam, como Alfredo Volpi.
Outros militantes armados fincaram posição nas esquinas, aguardando as milícias que se concentravam na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Um deles era Joaquim Câmara Ferreira, que em 1970 seria morto pela ditadura militar.
Por volta das 15h15, ecoou a primeira saraivada de tiros sobre os integralistas. Sobreveio outra. Não chegavam a mil os partidários de Plínio já na Sé.
Os milicianos da AIB reagiram e descarregaram armas contra os antifascistas. Enquanto balas zuniam, o comunista Hermínio Sacchetta e o trotsquista Fúlvio Abramo, jornalistas, discursavam.
Filiados à AIB fugiam e deixavam as camisas pelo caminho, temendo serem reconhecidos e agredidos. Sara assistia à debandada. “Pensei que eles teriam coragem de resistir.''
O humorista Barão de Itararé gracejou com o apelido galinhas verdes, pelo qual detratores maldiziam direitistas: “Um integralista não corre; voa''.
Somando quem perdeu a vida na praça e nos dias seguintes, noticiaram-se seis mortes -dois agentes da polícia política, um guarda civil, dois integralistas e um comunista.
Foi ferido o trotsquista Mário Pedrosa, no futuro um prestigioso crítico de artes plásticas e o filiado número 1 do PT.
Espírita e comunista
Nos três quartos de século seguintes, a batalha da praça da Sé foi objeto de outra contenda, a de balanço histórico.
Integralistas, como o jurista Miguel Reale, rejeitaram a qualificação de “batalha'', preferindo “tocaia'' esquerdista.
“Tocaia é o que foi feito'', defende o editor Gumercindo Rocha Dórea, 85. “Os integralistas saíram desbaratados. Não fizeram o desfile.'' Integralista desde a infância, ele mantém as convicções. Ocorre que Plínio Salgado empregou três vezes a palavra “batalha'' em artigo acerca do episódio.
Alguns integralistas sustentaram que a AIB não carregava armas. Por exemplo, Goffredo Teles Junior, que viria a migrar para a esquerda.
Mas o médico Ruy Escorel Ferreira-Santos, àquela altura camisa verde, testemunhou em suas memórias: “Muitos tínhamos armas e quero crer que, com mais razão, portassem-nas a chamada tropa de choque''.
Certa historiografia identifica Plínio avesso ao antissemitismo de outro prócer da AIB, Gustavo Barroso, presidente da Academia Brasileira de Letras em 1932, 33 e 50.
Sobrinho de Plínio, o advogado Genésio Pereira Filho, 89, afirma: “O pensamento integralista era antinazista. Os nazistas eram materialistas, ateus e racistas. O pensamento de Plínio Salgado era exatamente o contrário disso''.
“Eles estão contra nós''
No texto a respeito da batalha, Plínio revelou-se: “Declarei solenemente a guerra contra o judaísmo organizado. É o judeu o autor de tudo. (…) Fomos agora atacados, dentro de São Paulo, por uma horda de assassinos, manobrados por intelectuais covardes e judeus. Lituanos, polacos, russos, todos semitas, estão contra nós''.
A judia Sara de Mello -seu sobrenome de solteira é Becker, do pai lituano- lembra-se de companheiros de jornada como Noé Gertel, então acadêmico de direito, e Eduardo Maffei, à época formando de medicina.
Em seu livro “A Batalha da Praça da Sé'', Maffei assinalou: “Barramos o caminho ao fascismo no seu aspecto mais sanguinário''. Os integralistas reencontraram os antifascistas em novas manifestações, até serem postos -como os oponentes haviam sido- na ilegalidade, em 1937.
Nenhum remanescente da AIB soube indicar, vivo, correligionário veterano do entrevero de 34.
Sara diz que seus companheiros se foram -com exceção dela, Dórea e Pereira Filho, os citados nesta reportagem já morreram.
A caminho da praça da Sé, ela conversava com o estudante Décio Pinto de Oliveira, que morreria baleado. Ambos integravam a Juventude Comunista -Sara pensa hoje como antes. Seu amigo era também espírita. Ele disse a Sara que, se o matassem, reencarnaria para enfrentar os integralistas.