Estado da Bahia se nega a tombar casa onde Carlos Marighella cresceu
Mário Magalhães
O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) respondeu negativamente ao pedido de tombamento da casa da Baixa dos Sapateiros onde passou a infância, a adolescência e parte da vida adulta o revolucionário Carlos Marighella (1911-1969), um dos brasileiros de maior projeção internacional no século XX.
A decisão foi informada no dia 1º pela diretora geral do Ipac, Elisabete Gândara Rosa. Ela se dirigiu ao arquiteto Marcelo Carvalho Ferraz, autor da proposta.
O instituto é uma autarquia vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
A diretora afirma no documento, reproduzido acima na íntegra: ''[…] Apesar da importância histórica de Carlos Marighella, é do nosso entendimento que os remanescentes existentes dos imóveis localizados na Rua Barão do Desterro n°s, 3 e 5, já não possuem mais elementos que justifiquem uma análise de mérito para o tombamento estadual. Logo, este instrumento de proteção não seria o mais adequado aos referidos imóveis, haja vista o número de intervenções que as edificações sofreram ao longo dos anos, perdendo sua autenticidade e seus elementos compositivos, critérios para análise de mérito de salvaguarda''.
Noutras palavras, a chefe do Ipac sustenta que a edificação [foto no alto] onde o imigrante italiano Augusto Marighella e a filha de escravos Maria Rita Marighella criaram seus oito filhos está degradada demais para ser resguardada pelo Estado por meio de tombamento.
O advogado Carlos Augusto Marighella, filho do antigo militante comunista e guerrilheiro, afirmou em seu perfil no Facebook: ''Lamentavelmente, o Ipac nega pedido de desapropriação ou tombamento da casa em que meu pai viveu com a família na Baixa dos Sapateiros, [em] sua terra natal''.
Consultado pelo blog, o arquiteto Marcelo Ferraz disse: ''É uma decisão que revela insensibilidade e pequenez. Claro que na Bahia há milhares de casinhas como aquela, que não é nenhum exemplo de arquitetura ou técnica de construção que mereça ser preservado. Ela merece a preservação por seu valor simbólico, histórico, de memória. Perde Salvador e perde o Brasil''. Em sua opinião, o tombamento da casa que abrigou a família Marighella da década de 1910 até pelo menos o fim da de 1940 teria ''impacto urbanístico'' na Baixa dos Sapateiros, área empobrecida de Salvador. O projeto apresentado por Ferraz pressupunha a instalação ali de um centro de memória e cultural.
A moradia ainda tem muros, paredes e telhados, apesar do desgaste do tempo e da má conservação.
Nascido em Minas, formado na USP e radicado em São Paulo, Marcelo Ferraz foi estagiário de Lina Bo Bardi. Colobarou com a arquiteta italiana até a morte dela, em 1992. Com Lina Bo e o arquiteto Marcelo Suzuki, realizou projetos de revitalização no Centro de Salvador. É arquiteto multipremiado no Brasil e no exterior, autor de livros, curador de exposições. Coordenou o Projeto Monumenta, com o qual o Ministério da Cultura recupera sítios históricos em todo o país. Foi professor universitário aqui e nos Estados Unidos. Entre os seus projetos mais conhecidos como autor e co-autor estão o Museu Rodin (BA), o Museu do Pão (RS) e o Cais do Sertão (PE).
Marighella e a casa
Nascido perto de onde viria a ser construído o estádio da Fonte Nova, Carlos Marighella foi pequenininho para a casa que o Estado acaba de se recusar a tombar.
Lá ele morava quando se tornou famoso na capital baiana ao responder em versos rimados, em 1929, uma prova de física do legendário Ginásio da Bahia.
Lá morava ao ser preso pela primeira em 1932, junto com mais 500 estudantes universitários e o bacharel em direito Nelson Carneiro, que nos anos 1970 viria a ser o autor da Lei do Divórcio.
Lá morava ao deixar a Bahia, perseguido pela polícia, em fins de 1935. Em maio de 1936, ganhou pela primeira vez as manchetes dos jornais da então capital, o Rio de Janeiro, ao ser preso (passou 21 dias na tortura, o que não foi noticiado na época).
Lá se hospedou na campanha que o elegeu deputado federal constituinte em 1945, depois de passar seis anos (1939-1945) encarcerado.
Lá ficava em 1946, nas viagens à Bahia, no tempo em que era membro da mesa diretiva da Assembleia Constituinte que marcou a redemocratização do Brasil. Na Constituinte, Marighella era ghost-writer da bancada do Partido Comunista, ao lado do escritor Jorge Amado.
A cultura baiana, em especial daquele bairro popular, foi fundamental na formação de Marighella, o político mais conhecido mundo afora que a Bahia gerou _mais que Antonio Carlos Magalhães e os cearenses Antônio Conselheiro e Juracy Magalhães.
Transparência
Este blogueiro é autor da biografia ''Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo'' (Companhia das Letras). O livro não constitui nem promoção nem condenação do protagonista, mas relato jornalístico escrupuloso sobre o que ele fez, disse e, na medida do possível, pensou.
Depois de apresentar o pedido de tombamento, Marcelo Ferraz entregou ao Ipac observações minhas sobre o valor histórico da casa onde Marighella foi criado. Todas as informações constam do livro que escrevi.
Três comentários:
1) para quem não tem ideia de quem foi Marighella, basta contar que, lançada em 1968, no mesmo ano a revista ''Veja'' dedicou uma capa ao então guerrilheiro proclamado pela ditadura como o ''inimigo público número 1''. No ano seguinte, deu nova capa para Marighella, com foto dele morto. Quantos personagens, em toda a trajetória da publicação, mereceram duas vezes a capa no período de um ano?;
2) em seu ofício, a diretora do Ipac disse que o pedido de tombamento foi feito em maio de 2013. Dezesseis meses para dar a resposta que deu!;
3) o Ipac se refere ao mau estado do imóvel. A seguir este critério, só serão tombadas edificações de famílias abastadas, cujas gerações seguintes tiveram condições financeiras de preservar o patrimônio. O estado só tombaria como patrimônio cultural o que era dos ricos, ignorando o valor histórico do que não pertencia a abonados.
No próximo dia 4 de novembro, o assassinato de Marighella completará 45 anos. Desarmado, ele foi morto em 1969 por ao menos 29 agentes da ditadura armados até os dentes.
No que diz respeito às autoridades do Brasil, Carlos Marighella continua a ser um brasileiro maldito.