Lei da Anistia faz 35 anos hoje; a impunidade dos torturadores persiste
Mário Magalhães
Trinta e cinco anos atrás, no dia 28 de agosto de 1979, o ''Diário Oficial da União'' publicava a lei nº 6.683, que passaria à história como a Lei da Anistia. Assinaram-na o ditador João Baptista Figueiredo e seus ministros.
De lá para cá, torturadores, assassinos, genocidas e outros autores de crimes contra a humanidade foram punidos mundo afora, da Argentina à Sérvia, do Camboja à Alemanha.
Menos no Brasil.
Aqui, os velhos agentes do Estado que torturaram, mataram e sumiram com corpos de oposicionistas, privando as famílias de oferecerem uma despedida digna aos seus filhos, irmãos, pais e mães, continuam livres por aí.
Vão morrendo aos poucos e deixando a mensagem às futuras gerações: podem barbarizar de novo, porque dá em nada, é crime sem castigo.
A campanha da anistia mobilizou milhares de brasileiros na segunda metade da década de 1970. Exigia anistia ampla, geral e irrestrita aos perseguidos pela ditadura imposta em 1964. Jamais reivindicou a impunidade que a ditadura concedeu a si mesma e aos seus.
O plástico reproduzido acima é memorabilia daquelas jornadas, presente que ganhei de uma alma generosa.
Dez anos atrás, às vésperas do aniversário de um quarto de século da Lei da Anistia, escrevi na ''Folha'' o artigo republicado abaixo. A ferida segue purulenta.
A propósito, o que pensam sobre o assunto os candidatos à Presidência? Algo novo ou só a velha defesa mal disfarçada da impunidade dos agentes da ditadura?
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Anistia e tortura: uma ferida purulenta
Efemérides são oportunidade para redescobrir o passado e aprender com suas lições. São também armadilha: celebram mitificações, protocolos e lugares-comuns. O calendário de 2004 é gordo: 70 anos da primeira Constituição depois da República Velha, 60 do Dia D, meio século do tiro de Getúlio, quatro décadas do golpe de Estado, duas da Campanha das Diretas, uma da última curva do Senna.
No mês que vem, faz 25 anos a canetada com que o general João Baptista Figueiredo sancionou a Lei da Anistia. Será uma pena se o país desperdiçar a chance de encarar uma ferida purulenta e já longeva: a impunidade dos autores -e responsáveis- de atos de tortura, assassinato e desaparecimento forçado de oposicionistas na ditadura (1964-85).
Um bom começo é a releitura da lei 6.683, de agosto de 1979. Convencionou-se em círculos amplos interpretar que teria ocorrido um perdão de mão dupla: anistiavam-se os punidos por crimes políticos de 1961 a 1979, bem como os agentes do Estado que houvessem cometido violência de toda espécie contra aqueles.
Estes estariam abrigados no chapéu dos ''crimes conexos'', assim definidos: ''crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política''. Nenhum dos 15 artigos, contudo, fala em tortura.
Seria difícil: a anistia beneficiou quem foi condenado ou punido de algum modo. Ignora-se a existência de torturadores processados e castigados na Justiça devido aos flagelos físicos a que submeteram prisioneiros.
A anistia foi concedida individualmente. Não se tem notícia de quem tenha pronunciado seu próprio nome, assumido que amarrou seres humanos no pau-de-arara, seviciou-os com choques elétricos, matou-os a pauladas, sumiu com seus cadáveres, e tenha requerido perdão legal. Não há acusação e punição, inexiste anistia.
Considerar a Lei da Anistia como salvo-conduto aos torturadores poderia sugerir um direito nonsense: o regime que promoveu a barbárie teria a prerrogativa de se auto-anistiar. Estimularia o preceito segundo o qual o autor do crime pode ser também autor do perdão a si mesmo.
Voltar os olhos para o que passou não é exercício de arqueologia política. Ajuda a entender o presente. É difícil acreditar que o emprego disseminado da tortura hoje em dependências policiais não seja herdeiro da impunidade que amparou os torturadores de outrora.
Não basta que a história conte a tortura. É preciso conhecer os algozes e puni-los, como exemplo às gerações. Recorrer ainda ao clichê da ''fragilidade da democracia brasileira'' para desculpar os torturadores é expediente destinado a eternizar o temor de reabrir feridas. Elas nunca cicatrizaram.
Consagra a hipocrisia o país que proclama ter a anistia zerado o jogo para os torturadores, mas não lhes permite ocupar certos postos da administração pública. Está certo no veto, justamente porque a Lei da Anistia não os anistiou. Nem deveria. Ao mandar os velhos torturadores para a cadeia, a Argentina avisa: nunca mais. Ao deixar para lá os seus, o Brasil dá sinal verde a novas tragédias.
(Mário Magalhães, ''Folha de S. Paulo'', 12 de julho de 2004)