Há 60 anos: da direita à esquerda, imprensa pediu cabeça de Getulio em 1954
Mário Magalhães
Nesta semana, o atentado contra Carlos Lacerda completa 60 anos. O jornalista e opositor, mais opositor que jornalista, foi baleado em 5 de agosto de 1954, quando um guarda-costas seu foi morto. Dezenove dias mais tarde, o presidente Getulio Vargas sofreu um golpe de Estado e se suicidou.
Há dois olhares recorrentes sobre Getulio (assim o povo o chamava) ou Vargas (o tratamento dos adversários).
Um o reconhece exclusivamente como o governante golpista, que introduziu uma ditadura feroz, flertou com o nazifascismo, entregou a alemã-judia-comunista-grávida Olga Benario para Hitler e cuja polícia torturou e matou (o jovem revolucionário Carlos Marighella apanhou dos beleguins getulistas por 21 dias consecutivos, em 1936).
Outro apaga da memória os crimes de Getulio Vargas, para incensá-lo como o presidente eleito pelo voto popular em 1950 e em cujas gestões os trabalhadores obtiveram grandes conquistas. O presidente derrubado por golpistas e mártir dos pobres.
É claro que ele foi isso tudo, combinando em si o santo e o diabo, a depender dos valores que cada observador da história cultiva.
Das lições de agosto de 1954 _uma conspiração contra Getulio, a democracia e o Brasil_, a contribuição da imprensa para o atentado à Constituição foi das mais relevantes.
Outra lição decorre da união da direita (Lacerda à frente) e do então ultra-esquerdista PCB (pregava a luta armada contra o presidente eleito e adorado pelo povão) para depor o chefe de governo constitucional: quando a direita e a esquerda se juntam, é sempre para alegria da direita. Por exemplo, em 2013, quando alguns segmentos de ambas as correntes batalharam para expulsar partidos políticos de manifestações populares.
No ano passado, publiquei aqui no blog um levantamento sobre o comportamento da imprensa na crise de 1954. Reproduzo-o, abaixo, com o texto atualizado.
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Existe um livro chamado “Em agosto, Getulio ficou só”. Nunca o li, mas sempre apreciei o título bem bolado.
No próximo dia 24 de agosto, o suicídio do presidente Getulio Dornelles Vargas completa 60 anos. A visita à imprensa da época evidencia que, se dependesse do radicalizado ambiente jornalístico, o gaudério de São Borja não teria mesmo como escapar. Ele foi deposto de madrugada, na forma de uma “licença”. Ao se matar, de manhãzinha, impediu os militares de assumirem diretamente o governo. Com o sacrifício, atrasou o golpe de Estado em dez anos.
Com muitas publicações levando para a internet suas coleções, e a Biblioteca Nacional botando no ar parte de sua hemeroteca, ficou mais fácil consultar os velhos jornais. Eles confirmam que o presidente sufragado pelo voto popular em 1950 estava acossado pela direita, principalmente, mas também pela esquerda.
Além da “Última Hora”, financiada pelo Palácio do Catete, então sede da Presidência, o “Jornal do Brasil” se opôs à iminente virada de mesa institucional. Não deveriam estar sozinhos, como um levantamento mais vasto demonstrará, mas quase.
As primeiras páginas abaixo são dos matutinos, em 24 de agosto de 1954, e dos vespertinos, na véspera. Isto é, as derradeiras edições antes do anúncio do tiro no peito. Nem todos os links, que permitem ler o jornal inteiro, têm acesso livre.
Não encontrei na hemeroteca digital, ainda incompleta, a “Tribuna da Imprensa”, propriedade de Carlos Lacerda, opositor obstinado. O site da Biblioteca Nacional demora anos-luz para baixar as imagens. Minha assinatura venceu, e não pude ir além da capa de “O Estado de S. Paulo”.
O jornal mais panfletário foi o “Diário Carioca”, que saiu com o minieditorial “Reú, renúncia, rua”. A demissão do presidente seria “exigência da consciência nacional ante a vergonha nacional e internacional a que o governo dos Vargas arrastou o Brasil”:
Detalhe da primeira página do “Diário Carioca'':
“O Globo” também deu editorial pedindo a cabeça de Getulio. Ofereceu duas opções: “por um ato de sua livre vontade” ou “sob coação das circunstâncias”. Em caso de derrubada, o Brasil continuaria na condição de “um estado juridicamente constituído”:
O “Diário da Noite” pertencia à rede do magnata Assis Chateaubriand. Fiel escudeiro de Chatô, o jornalista Austregesilo de Athayde pontificou, em sua coluna: haveria “podridão do governo” e “negociatas do chefe da Guarda Pessoal” do presidente. Aconselhou interferência militar: “Atentem nesse índice a opinião e as Forças Armadas, a fim de ajuizarem corretamente a anarquia moral em que se encontra submerso o país”:
Na polarização da Guerra Fria, os três diários mencionados estavam ao lado dos Estados Unidos. Porém, a “Imprensa Popular” (li em arquivo físico da Universidade Estadual Paulista), pró-União Soviética, também conclamou pela derrubada de Getulio. Ou seja, pelo golpe. Na manhã de 24 de agosto, o jornal republicou uma entrevista do principal líder comunista, Luiz Carlos Prestes. Seu partido, então banido, editava a “IP”. Embora denunciasse “os golpistas” em geral, Prestes defendeu, mimetizando Lacerda, “pôr abaixo o governo Vargas”:
Os paulistanos “Folha da Manhã” e “Folha da Noite” noticiaram os movimentos do presidente e as ações dos conspiradores golpistas, mas não tomaram posição explícita, pelo menos que eu tenha reparado:
Como era seu padrão, “O Estado de S. Paulo”, histórico contendor de Getulio Vargas, dedicou a primeira página ao noticiário internacional:
No Rio, o “Jornal do Brasil” também tinha suas idiossincrasias, reservando quase toda a capa para anúncios de arrumadeiras, copeiras, choferes e jardineiros. Foi a única publicação consultada com a informação da queda de Getulio, mas não da morte. Fechou depois das cinco da manhã. A manchete: “Renunciou o presidente da República”. Não havia renunciado, mas havia fogo sob a fumaça. Em editorial, o “JB” se opôs à deposição, porque inexistia “conhecimentos dos fatos”, sobre o atentado contra Carlos Lacerda no começo do mês. Sem conhecê-los, seria temerário opinar acerca de “quaisquer das soluções de natureza constitucional que as crises imponham”. Jamais se provou que Getulio soubesse do plano contra Lacerda:
Na internet, só encontrei a “Última Hora” em um trabalho acadêmico. A manchete histórica: “Só morto sairei do Catete!”. No dia seguinte, o jornal estampou: “O presidente cumpriu a palavra: ‘Só morto sairei do Catete!’”:
Se permitem um pitaco, são legítimas todas as apreciações sobre Getulio Vargas e seu legado, que estamos conhecendo melhor com a trilogia de fôlego que o jornalista Lira Neto vem publicando, pela Companhia das Letras (acaba de ser lançado o terceiro volume, relativo ao período 1945-54). Mas o aspecto central em 1954 é o golpe de Estado contra um presidente constitucional.
Getulio não era mais o ditador da quadra 1930-34 e 1937-45, em tantos ângulos deplorável ou mesmo asqueroso. Era um governante eleito pelo povo. Sua derrubada fez mal ao país, que desprestigiou a democracia. E aos trabalhadores, cujas conquistas haviam se acumulado na administração democrática do presidente que saiu da vida para entrar na história.