Blog do Mario Magalhaes

A Remington que pariu ‘Viva o povo brasileiro’, por Karina Kuschnir

Mário Magalhães

JUR

 

Foi na Remington acima que João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) escreveu a obra-prima ''Viva o povo brasileiro''.

O desenho é de autoria da artista plástica Karina Kuschnir.

Melhor dizendo, artista plástica, jornalista, antropóloga, cronista, acadêmica, contadora de histórias… não sei em que ordem a professora prefere.

A Karina publicou o desenho no saboroso blog dela, junto com causos sobre a máquina, o antigo dono da máquina, o novo dono.

Sei que já o apresentei, mas reitero: para acompanhar o blog da Karina, basta clicar aqui.

Reproduzo abaixo o post que acompanha a ilustração, com direito também a artigo do escritor Juva Batella, sobrinho de João Ubaldo e herdeiro do tesouro que é esta máquina de escrever.

( O blog está no Facebook e no Twitter )

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Viva o tio João

Por Karina Kuschnir

Como contei no post sobre as dez lições da vida acadêmica, meu primeiro trabalho no mestrado foi sobre João Ubaldo Ribeiro. Era centrado no livro Viva o povo brasileiro, cujas quase 700 páginas li apaixonadamente em 1990.

Com a morte do João, deu tanta saudade dos seus romances… Li todos (até então publicados) de uma vez só!

Foi assim. Um belo dia, entrei numa sala de aula da PUC (era meu último semestre no curso de jornalismo) e conheci um aluno três anos mais jovem que se dizia “sobrinho do João Ubaldo Ribeiro”. Um cara incrível, engraçado, poético, falante e bonito. Ficamos amigos. Éramos ambos apaixonados por literatura, por cartas e por escrever. Ele provou que era sobrinho do João mesmo! Toda semana me dava um romance do tio. E ao invés dos textos do curso (de Psicologia da Comunicação), conversávamos horas e horas sobre os livros, as cartas, os artigos, o humor e as ideias do Ubaldo!

O ápice da minha febre-ubaldina foi quando terminei meu sofrido trabalho (já  no mestrado) e mandei para o “tio João”. Depois, fui finalmente conhecê-lo em pessoa. Tivemos uma conversinha… Ele ali, naquela simplicidade, na casa da sogra, de chinelos, sem ares de fama. Dei boas risadas. A gente não se deve levar muito a sério, ele disse.

O sobrinho dele também passou a escrever livros, tem vários romances lindos. Fez até uma tese de doutorado sobre o tio (que vai virar livro) e guardou com carinho o presente histórico: a máquina de escrever Remington — exatamente a máquina onde foram datilografadas as páginas mágicas de Viva o povo brasileiro e que vai desenhada aí em cima.

E como consegui desenhar essa máquina para o blog? Porque tenho fotos — ela está na casa portuguesa deste que muitos anos e perdas de cabelo depois se tornou meu namorado…

Deixo com vocês a homenagem que ele escreveu para o jornal Público (Portugal) na semana da morte de João Ubaldo.

Cartas ao jovem sobrinho

Por Juva Batella

Quando publiquei o meu primeiro livro entreguei um exemplar ao velho tio e, ansioso como um jovem autor não deveria ser, não esperei passarem-se 24 horas e já o procurei, batendo-lhe à porta, para saber o que havia afinal achado do meu primeiro romance, e ele me puxou para dentro com veemência, como se fugíssemos de repórteres, e me aconselhou aos cochichos a jamais perguntar a opinião de alguém acerca de um livro que se tenha escrito. “Deixe que o leitor se manifeste, querido sobrinho. Jamais pergunte uma coisa dessas!” E me disse meses depois, numa carta, que eu arranjasse, por amor a todos os santos da Bahia, uma ocupação decente, “que não se aproximasse tão perigosamente do ofício de seu tio”. E as inúmeras cartas que recebi dele começavam sempre assim: “Irrepreensível e inadmoestável sobrinho”. E me aconselhou a ler Shakespeare. “Basta isso, sobrinho! E que Deus tenha pena de sua alma jovem! Basta ler Shakespeare, ainda há tempo!, e todo o resto virá naturalmente. E se você me disser que não lê em inglês aí eu deixo de me dar com você, vá ler inglês urgentemente, conselhos do velho tio: há que ler os clássicos! Os clássicos não são clássicos à toa. O que se deve evitar é ler o que escreveram sobre os clássicos, a não ser que o autor do clássico sobre o clássico seja também um clássico, coisa rara, mas encontradiça.” Também me aconselhou a ler Homero, “principalmente A Ilíada, é claro”, e me sugeriu que evitasse as traduções em versos, porque os pés gregos são inimitáveis. E numa das cartas, a maior e a mais divertida de todas, simulou uma entrevista que eu daria, anos mais velho, à revista Fortune, onde, acendendo o meu charuto com uma nota mil dólares, relataria ao curioso e assustado repórter as origens do meu sucesso capitaneando um império editorial sem tamanho. “Mas vê-se que o senhor não é um fumante de charutos…”, assim disse eu, como personagem de João Ubaldo, ao estupefato repórter que me entrevistava para a Fortune. “Qualquer fumante de charutos sabe que o charuto aceso com uma nota de mil dólares tem um sabor inigualável.” E em todo os momentos da minha vida o velho tio praticamente me obrigou a prosseguir em minha “trilha triunfal e adotar como lema Audaces fortuna juvat, que calha muito com o seu nome: a sorte sorri aos audazes! Em frente! Eia Sus!”, escreveu ele, que sempre assinava assim: “Misteriosamente, João Ubaldo Ribeiro”.

Hora de reler o velho tio, linha a linha, e refazer esse traçado que já faz parte de mim.

Ah!, e de vez em quando ele assinava assim: “Do seu velho tio, Ubaldão, o Cruel”.

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Sobre o desenho: Fiz o desenho sobre a foto da máquina original com uma canetinha para Ipad (genérica, que o Antônio comprou no Japão por 5$) na app Procreate. Depois imprimi, colori com lápis de cor para que a fita da máquina ficasse verde e amarela, e scaneei de novo. Levei quase duas horas para desenhar a máquina e todos os seus detalhes. A melhor parte foi observar com calma cada pedacinho, cada desgaste, e ainda os símbolos antigos de cruzeiro, de libra, de parágrafo… É bem clichê dizer isso, mas… saber que uma peça tão simples produziu uma obra tão gigante me faz lembrar de consumir menos & produzir mais.