Blog do Mario Magalhaes

Anais do futebol argentino: O dia em que o Che pegou um pênalti

Mário Magalhães

O argentino Ernesto Che Guevara, em foto de Alberto Korda

 

Na manhã deste sábado, Copacabana se transformou no bairro das placas pretas, tantos são os automóveis vindos da Argentina que estão aqui no Rio.

Argentina e Alemanha se confrontam domingo no Maracanã, na grande final desta grande Copa do Mundo.

Argentinos gostam mesmo de futebol. Lembrei-me de uma passagem boleira da vida do Che Guevara. Para reconstituí-la, nos 30 anos da morte do guerrilheiro, em 1997, fui à fronteira do Brasil com a Colômbia.

Anos mais tarde, contei a viagem, na croniqueta reproduzida abaixo:

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O dia em que o Che pegou um pênalti

No fim de uma tarde dominical de junho de 1952, o goleiro e técnico de futebol Ernesto Guevara de la Serna perfilou-se para a execução do hino da Colômbia. Abaixou-se para limpar o sangue em um joelho. Ferira-se nos voos acrobáticos com que obrara o milagre de levar o Independiente Sporting à decisão do torneio daquele dia.

Um coronel destemperou-se com o que considerou desrespeito do argentino de 24 anos de idade. Ralhou e mandou que levantasse. Guevara preparou-se para reagir. Lembrou que tinha uma passagem aérea a receber, além de alguns trocados. Deixou para lá.

Chegara havia menos de uma semana àquele fim de mundo de nome Leticia, cidadezinha xifópaga da brasileira Tabatinga. Com Alberto Granado, alcançara-a de balsa, depois de se perder no rio Solimões. Meio ano antes, por aqui com o curso de medicina, Guevara topara a proposta do amigo mais velho: partir para uma aventura latino-americana a bordo de uma motocicleta de 500 cilindradas. Ao bater em Leticia, já não tinham moto alguma. Na verdade, não tinham nada.

Sem dinheiro, ofereceram seus préstimos de médicos, ou quase isso. Queriam passagens de avião, gratuitas, para Bogotá. Em dois dias, ouviram a oferta: casa, comida, roupa lavada, bilhetes com desconto e um dinheirinho para treinar o time no qual ninguém levava fé. Caiu do céu. O Uruguai era campeão mundial. O Brasil, vice. Mas os craques, poucos duvidavam, nasciam na Argentina.

Ernesto e Alberto dividiram o comando. Num treino domingo de manhã, o primeiro apitou, e o segundo dirigiu a equipe. Levaram 2 a 0, e não teve jeito. Teriam que jogar. Havia um problema, a saúde de Guevara. Na umidade amazônica, a asma voltara a incomodar. Na linha, não daria. Menos mal que Granado era um estilista do meio-campo. Tão elegante que os colombianos apelidaram-no Pedernerita, referência ao genial futebolista argentino Adolfo Pedernera.

Cinco equipes jogaram na ''cancha popular'', rodeada pela selva. Na primeira partida do Independiente, Granado deixou o seu. Venceram. Na segunda, Guevara fechou o gol. Jogava adiantado, lembraria seu amigo numa longa conversa que tivemos por telefone. Na época, goleiros ainda se mantinham embaixo do travessão. Com o 0 a 0, passaram à final porque tiveram mais escanteios a favor.

Na decisão, outro empate. Nos pênaltis, Guevara pegou um, mas o time perdeu. O goleiro escreveu à sua mãe: ''Defendi um penal que vai ficar na história de Leticia''.

Lembrei o episódio por causa do filme ''Diários de Motocicleta'', de Walter Salles. Conta a viagem dos amigos argentinos. Não sei se o pênalti chegou à tela. Assim que estrear, vou correndo assistir. Em 1997, nos 30 anos da morte do revolucionário que em Cuba virou ''El Che'', viajei a Leticia para contar como fora o campeonato relâmpago. Na hora de titular, mandei de bate-pronto: ''Che: bom de bala, bom de bola''.

(Mário Magalhães, ''Folha de S. Paulo'', 30 de abril de 2004)

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