O ódio de Justo Verissimo e a demonização do futebol
Mário Magalhães
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Com a proximidade do pontapé inicial, os queixumes se multiplicam. Não ressoa nos tímpanos somente a condenação à gastança pública associada à Copa, crítica tão legítima quanto o aplauso dos entusiastas da promoção do Mundial. Mas o arraigado desprezo, de certos bem pensantes, endinheirados e candidatos a endinheirados, pelo futebol.
O velho ranço deu um tempo no armário, mas já circula de novo flamejante por aí: o futebol concentraria alguns males nacionais.
A violência, por exemplo. No futebol, seria aberrante.
Será? Uma coisa é considerar que os criminosos que se engalfinham nas arquibancadas devam ser julgados, como qualquer cidadão, na forma da lei. Outra é amaldiçoar as torcidas organizadas como a encarnação da truculência. No país com índice obsceno de homicídios de jovens, sobretudo negros e mestiços, é evidente que a mazela não é exclusiva do futebol.
Os sabidos, até tipos vulgares que preferem Miami, tendo dinheiro para ir a Paris, gargalham da ignorância de jogadores.
Mas a formação deficiente é típica do esporte mais popular ou característica maldita do Brasil? Fernando Collor, em cujo lar a mãe esnobe às vezes impunha o francês, como se à família imperial pertencesse, pronunciou o célebre “duela a quién duela”, inventando um idioma. Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo, fala “própio” e “propiamente”. Dilma Rousseff derrapa na língua, e o Lula… E ignorantes são os boleiros.
Em vários círculos, o jornalismo esportivo é menosprezado como reduto de analfabetos. O lastro cultural limitado de muitos de nós jornalistas, contudo, não se limita aos que cobrem esporte. Já se esqueceram da repórter _não “esportiva”_ que perguntou, na década de 1990, se a escultora Camille Claudel viria para a vernissage de sua exposição no Rio? Como se sabe, a francesa amante de Rodin morrera nos tempos da Segunda Guerra.
O jornalismo esportivo é apontado como o cocô do cavalo do bandido da comédia nacional que a censura proibiu (esta expressão, que trai a idade do escriba, costumava ser empregada nos tempos da ditadura). Junto com o jornalismo policial, é o segmento em que tradicionalmente a remuneração dos trabalhadores é menor.
O jornalismo esportivo peca pela escassez de espírito crítico, acusam.
Concordo. Mas não existe jornalismo mais chapa-branca do que o econômico, no mais das vezes porta-voz dos interesses das grandes corporações financeiras, e não fiscal do poder.
Ressente-se de excesso de opinião em detrimento de informação, diagnosticam.
Também de acordo. Mas nessa matéria não dá para concorrer com o jornalismo político brasiliense, certo?
Observadores mais atentos apontam para os interesses cruzados das empresas que cobrem “jornalisticamente” as competições das quais são sócias.
O comentário procede. Mas o jornalismo cultural não sofre de idêntico conflito?
O jornalismo esportivo é reputado como antro de microcéfalos, as torcidas organizadas como o paroxismo da violência e os jogadores como o suprassumo do apedeutismo pelo mesmo motivo: porque se dedicam, de um modo ou outro, ao esporte mais identificado com os brasileiros mais pobres, embora o futebol constitua paixão que atravessa as classes sociais.
O futebol é demonizado como síntese de uma nação e de uma gente que teriam nascido para fracassar. Certa classe-média tem repetido, e isso eu ouço especialmente em aeroportos e aviões, a palavra “futebol” como causa de transtornos que estão, aí sim, vinculados à Copa.
Hoje às 9h um tuiteiro escreveu, desdenhando o país: “Parabéns, Brasil! O país do samba, futebol e Carnaval”. Isto é, três paixões populares.
O futebol, alardeiam alguns, é o paraíso da impunidade, como provariam Havelange, Teixeira e Marin.
Ué, mas essa chaga não é historicamente brasileira? Não estão aí, com a bola toda, Collor e Sarney? O coronel Ustra não escapou da cadeia?
A construção absurda de estádios com verba pública, parte deles com vocação de elefante branco, é a cara do futebol, fustigam.
Não: desgraçadamente, é a cara do Brasil. Ou as memórias curtas não se recordam da Transamazônica e da Norte-Sul (ou pelo menos do custo da ferrovia)? E da Cidade da Música (depois Cidade das Artes), no Rio? Em relação a ela, à sua necessidade, ao seu alegado caráter prioritário, inexistiu comoção do pessoal. Afinal, ópera é ópera, e não o reles futebol. A obra pública não consumiu menos de meio bilhão de reais.
O futebol é desqualificado desde que, de uma atividade punhos-de-renda, restrita às elites dos grandes centros urbanos, transformou-se em esporte enraizado entre os pobres.
Justo Verissimo, o personagem do Chico Anysio que consagrou o bordão “odeio pobre”, hoje diria: “Odeio futebol”.
O ex-esporte bretão não concentra nenhum mal, ele espelha as moléstias brasileiras.
Mas agora, além de desfraldarem as bandeiras do preconceito, os ricos afastam os desvalidos dos estádios, denominados arenas multiuso. Adeus, velhos estádios de futebol, fora geraldinos e fora arquibaldos. Com o preço dos ingressos, quem tem menos e até quem tem mais ou menos não pode pagar.
O futebol se estabeleceu como a mais democrática das nossas paixões. Por isso, reitero, é tão depreciado.
O futebol não é culpado de nada. Pelos caminhos tortuosos da Copa, o país hoje se discute como poucas vezes na sua história. Viva o futebol!
Não faltam problemas ao Brasil. Mas arrumem outro bode expiatório, porque o futebol é motivo de orgulho, enriquece a nossa vida e engrandece a nossa alma.