Blog do Mario Magalhaes

Promessa descumprida sobre gastos com a Copa legitima protestos ainda mais

Mário Magalhães

Estádio Mané Garrincha, o mais caro da Copa (Foto: divulgação)

Na ''arena'' do Distrito Federal, dinheiro público a rodo – Foto reprodução

 

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A tabelinha dos meus solitários neurônios mais dispostos com os cabelos brancos de quem tem o que lembrar não me permite esquecer, e às vezes a memória mais incomoda do que conforta.

Na TV, volta e meia pontifica sobre as nebulosas da economia um consultor sabichão, antigo condutor da política econômica que resultou em mais de 80% de inflação, num só mês, em 1990. Sim, eu lembro.

Bem como não ignoro que na ditadura, tão pranteada por meia dúzia de viúvas inconsoláveis, a dívida externa galopou, a desigualdade se acentuou, e a inflação teve índices maquiados para aparentar que os preços estavam sob rédea curta. As viúvas formam no time de saudosistas que hoje encenam angústia com alegado descalabro inflacionário.

Não vivi, mas aprendi, que muitos daqueles que mais alardeiam preocupação com os rumos da Petrobrás são herdeiros dos senhores que, seis décadas atrás, descabelavam-se com a iminência da adoção do monopólio estatal do petróleo _o que não justifica a aparente gatunagem de quem, com mão grande criminosa, vem embolsando patrimônio público na empresa.

Eu me lembro muito bem que em 2007 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfileirou declarações, a respeito da organização da Copa do Mundo reivindicada pelo Brasil, na linha de ''tudo será bancado pela iniciativa privada''.

O então ministro do Esporte, Orlando Silva, reiterou, também naquele ano: ''Estádios de futebol, arenas, locais de competição, isso tudo pode ser feito com investimento privado''.

O ministro enfatizou: ''O governo pensa em não destinar dinheiro público para a construção ou remodelação de estádios. Essa questão deve partir da iniciativa privada''.

Como se sabe, não partiu, e recursos dos contribuintes foram (e estão sendo) derramados em obras do Mundial, inclusive estádios como o Mané Garrincha e o Maracanã. Quem mais paga impostos no Brasil são, em proporção, os pobres.

Deve-se ao abismo entre a promessa original de gasto público zero com instalações da Copa e os bilhões despendidos mais tarde a impropriedade de comparar a opinião de ontem com a de hoje sobre a justeza de receber o Mundial.

Há sete anos, os brasileiros formaram juízo com base em parâmetros apresentados pelo governo. As pesquisas atestaram apoio majoritário à iniciativa de hospedar a Copa.

Agora, os parâmetros são outros, o que torna previsível maior equilíbrio entre os favoráveis e os opositores ao Mundial.

O contraste entre o antes e o depois é o que mais fragiliza o proselitismo contra os manifestantes que protestam contra a Copa ou contra as despesas públicas com a competição, no país pornograficamente desigual e sedento de serviços públicos decentes.

Se uma pessoa pensava assim e passou a pensar assado, é legítima a mudança. Mais legítima é se as garantias oferecidas no passado não se confirmam. No caso, as garantias de não torrar um só centavo do erário em obras como praças esportivas.

Ainda mais com a entrega de patrimônio do Estado para companhias particulares explorarem, como fez o governo do Rio com o Maracanã. Empreiteiras ganharam com a construção ou reforma paga pelos cidadãos e uma delas continua ganhando, ao assumir o estádio.

No Distrito Federal, a dinheirama pública esbanjada para erguer uma dita arena tem ao menos três estimativas: R$ 1,4 bilhão, R$ 1,6 bilhão e R$ 1,9 bilhão. Obra bilionária, feito o Maracanã, tudo às custas dos cofres públicos.

Outros ataques contra os militantes anti-Copa que me parecem desprovidos de mérito condenam os protestos porque eles seriam extemporâneos, por surgirem tardiamente.

Primeiro, como dito, a realidade frustrou as promessas. Segundo, o argumento equivale a desqualificar, por não ter ocorrido mais cedo, a massiva campanha que, em torno da bandeira das eleições diretas, batalhou pelo fim da ditadura em 1984.

Pior é criticar movimentos organizados como os de trabalhadores assalariados, de funcionários públicos e de brasileiros sem habitação por se ''aproveitarem'' da proximidade da Copa. Ora, ninguém é inocente de supor que no Brasil alguma conquista caia do céu. Quem não chora não mama, sobretudo os mais fracos, eis uma lição irrefutável da nossa história.

Como se não bastasse o descumprimento do prometido, os brasileiros testemunham abusos de hipocrisia. Membro do comitê organizador, o empresário Ronaldo Nazário se disse envergonhado com o atraso de obras. Ele não se envergonhou por ter sido nomeado ou indicado por Ricardo Teixeira. Nem por dinheiro público ser presenteado para a iniciativa privada, como no episódio da Odebrecht mimoseada com o Maracanã tinindo de novo. Nem pelo preço ofensivo dos ingressos que impedem garotos humildes como o Ronaldo surgido no São Cristóvão de assistir em loco não somente a partidas do Mundial, mas até a peladas do Campeonato Brasileiro. Muito menos pelos operários mortos ao construir estádios que seus filhos não poderão frequentar.

É ou não compreensível que tanta gente se sinta lograda?

Num cenário de expansão da intolerância no debate público, quando insultos substituem ideias, foi oportuna a reportagem na ''Folha de S. Paulo'' mostrando que o custo público da Copa fica muito aquém do que se reserva aos serviços públicos.

Do ponto de vista da legitimidade dos que se opõem ao Mundial, contudo, o desembolso poderia ser de um real. Não constitui escândalo advogar que a moeda seja encaminhada a uma escola e não a um estádio.

Em 2007, firmou-se um pacto entre governo e nação: enfim, vamos realizar a Copa dos sonhos, mas sem sacrificar quem já é muito sacrificado. O pacto foi rompido.

Talvez o que mais me tenha intrigado nesses anos tenha sido a recusa dos governos estaduais, municipais e sobretudo federal a explicar por que mudaram o paradigma. Parece que não têm o dever de prestar contas e se submeter ao escrutínio público.

Se separar algumas dezenas de bilhões para a Copa era o único meio de abrigá-la, gerando potencialmente desenvolvimento, renda, emprego, autoestima e outros benefícios, que se dissesse isso aos brasileiros, para que pudéssemos escolher.

Desde sempre simpatizei com a candidatura para a Copa, sem dinheiro público em estádios. No balanço sincero da história, mantenho-me a favor, mesmo com os gastos que ocorreram _descontando, é óbvio, as suspeitas de superfaturamento sob investigação.

Torço para que o Brasil promova o melhor Mundial possível e estou ansioso para que a bola role. Vai ter Copa, e a Copa pode ser futebolisticamente de primeira.

Mas é inadmissível demonizar quem julga erro sediá-la. E tem o direito democrático de desfraldar seus estandartes e ecoar suas palavras de ordem.