Nos 100 anos de Caymmi e Lacerda, o blog toca a obra-prima que eles criaram
Mário Magalhães
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Numa coincidência do destino, dois gigantes da história do Brasil vieram ao mundo no mesmo dia e no mesmo ano do século XX: o baiano Dorival Caymmi e o carioca Carlos Lacerda, cujos centenários de nascimento se completam por estas horas, na quarta-feira 30 de abril de 2014.
A foto de Dorival Caymmi lá em cima retrata o que ele foi durante toda a vida, compositor genial e cantor sedutor.
Já a do tribuno Carlos Lacerda eterniza um momento relativamente breve da sua existência, o de militante de esquerda vinculado ao Partido Comunista. Escolhi a imagem de 1935 porque ali e nos anos seguintes Lacerda conviveria com o escritor Jorge Amado, quadro do PCB, e Dorival Caymmi, simpatizante do partido.
Na década de 1940, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (Carlos em homenagem a Karl Marx; Frederico, a Friedrich Engels) se tornaria o mais brilhante anticomunista que o país conheceu, um infatigável semeador de golpes de Estado e o orador mais talentoso da República. No flanco direito, acabaria rompendo ou se afastando de Jorge e Caymmi.
Na segunda metade dos anos 1930, os três ainda na esquerda, Caymmi compôs a melodia, e Lacerda e Jorge escreveram a letra de uma linda canção, ''Beijos pela noite''.
Por conta dos desencontros ideológicos, essa obra-prima só viria a ser conhecida nos festejos dos 80 anos de Dorival. Quem esquadrinhou a origem da composição foi Stella Caymmi, em sua ótima biografia do avô, ''Dorival Caymmi: O mar e o tempo'' (Ed. 34, 2001).
Procurei o livro, mas a biblioteca aqui de casa está um caos, e não o encontrei. Lembro que Stella revelou que a primeira parte da letra é de Jorge Amado, e a segunda, de Carlos Lacerda.
Como entusiasta de um rabo-de-saia, Jorge celebra a paixão:
''Aqui/ O teu corpo nos meus braços/ Nossos passos pela estrada/ Nossos beijos pela noite/ E a Lua/ Pelos campos minha amada/ Pelos bosques, pelas águas/ Acompanha o nosso amor''.
Lacerda, ao contrário, deprime-se como o jovem, ele, que tentara o suicídio na juventude (isso eu li no primeiro volume da biografia ''Carlos Lacerda: A vida um lutador'', do historiador John W. F. Dulles (Nova Fronteira, 1992):
''Hoje já passado tanto tempo/ Pela noite escura e triste/ Pelas vias alamedas/ A chuva apaga a marca dos teus passos/ Do caminho abandonado/ A saudade é o meu luar''. (…) ''Um dia sentirás a mocidade / No teu corpo fatigado/ Da saudade dos caminhos/ Então sob a lembrança dos meus beijos/ Nosso amor adolescente poderá recomeçar''.
Ouça clicando aqui, na belíssima interpretação de Danilo e Simone Caymmi.
Quantas outras músicas como essa o trio não poderia ter criado?
Em 1945, Caymmi (1914-2008) comporia o jingle da campanha eleitoral comunista:
Ordem e tranquilidade
Progresso e democracia
Para o povo igualdade
O partido é o nosso guia
Em 1950, Carlos Lacerda (1914-1977) pregou:
''O sr. Getulio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar''.
Volta e meia me perguntam quem eu gostaria de biografar, se viesse, o que é pouco provável, a escrever uma nova biografia.
Encho a boca para responder: Carlos Lacerda, Leonel Brizola e Mário Pedrosa.