Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : abril 2014

Nos 100 anos de Caymmi e Lacerda, o blog toca a obra-prima que eles criaram
Comentários Comente

Mário Magalhães

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Numa coincidência do destino, dois gigantes da história do Brasil vieram ao mundo no mesmo dia e no mesmo ano do século XX: o baiano Dorival Caymmi e o carioca Carlos Lacerda, cujos centenários de nascimento se completam por estas horas, na quarta-feira 30 de abril de 2014.

A foto de Dorival Caymmi lá em cima retrata o que ele foi durante toda a vida, compositor genial e cantor sedutor.

Já a do tribuno Carlos Lacerda eterniza um momento relativamente breve da sua existência, o de militante de esquerda vinculado ao Partido Comunista. Escolhi a imagem de 1935 porque ali e nos anos seguintes Lacerda conviveria com o escritor Jorge Amado, quadro do PCB, e Dorival Caymmi, simpatizante do partido.

Na década de 1940, Carlos Frederico Werneck de Lacerda (Carlos em homenagem a Karl Marx; Frederico, a Friedrich Engels) se tornaria o mais brilhante anticomunista que o país conheceu, um infatigável semeador de golpes de Estado e o orador mais talentoso da República. No flanco direito, acabaria rompendo ou se afastando de Jorge e Caymmi.

Na segunda metade dos anos 1930, os três ainda na esquerda, Caymmi compôs a melodia, e Lacerda e Jorge escreveram a letra de uma linda canção, “Beijos pela noite”.

Por conta dos desencontros ideológicos, essa obra-prima só viria a ser conhecida nos festejos dos 80 anos de Dorival. Quem esquadrinhou a origem da composição foi Stella Caymmi, em sua ótima biografia do avô, “Dorival Caymmi: O mar e o tempo” (Ed. 34, 2001).

Procurei o livro, mas a biblioteca aqui de casa está um caos, e não o encontrei. Lembro que Stella revelou que a primeira parte da letra é de Jorge Amado, e a segunda, de Carlos Lacerda.

Como entusiasta de um rabo-de-saia, Jorge celebra a paixão:

“Aqui/ O teu corpo nos meus braços/ Nossos passos pela estrada/ Nossos beijos pela noite/ E a Lua/ Pelos campos minha amada/ Pelos bosques, pelas águas/ Acompanha o nosso amor”.

Lacerda, ao contrário, deprime-se como o jovem, ele, que tentara o suicídio na juventude (isso eu li no primeiro volume da biografia “Carlos Lacerda: A vida um lutador”, do historiador John W. F. Dulles (Nova Fronteira, 1992):

“Hoje já passado tanto tempo/ Pela noite escura e triste/ Pelas vias alamedas/ A chuva apaga a marca dos teus passos/ Do caminho abandonado/ A saudade é o meu luar”. (…) “Um dia sentirás a mocidade / No teu corpo fatigado/ Da saudade dos caminhos/ Então sob a lembrança dos meus beijos/ Nosso amor adolescente poderá recomeçar”.

Ouça clicando aqui, na belíssima interpretação de Danilo e Simone Caymmi.

Quantas outras músicas como essa o trio não poderia ter criado?

Em 1945, Caymmi (1914-2008) comporia o jingle da campanha eleitoral comunista:

Ordem e tranquilidade

Progresso e democracia

Para o povo igualdade

O partido é o nosso guia

Em 1950, Carlos Lacerda (1914-1977)  pregou:

“O sr. Getulio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.

Volta e meia me perguntam quem eu gostaria de biografar, se viesse, o que é pouco provável, a escrever uma nova biografia.

Encho a boca para responder: Carlos Lacerda, Leonel Brizola e Mário Pedrosa.


Viúvas da ditadura faltam ao enterro: na despedida, o torturador ficou só
Comentários Comente

Mário Magalhães

Corpo do coronel reformado do Exército Paulo Malhães foi enterrado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense

Corpo do torturador Paulo Malhães é enterrado – Foto Bernardo Tabak/UOL

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

As contas oscilam, mas nenhuma reportagem descreveu mais de meia centena de pessoas no velório e no enterro  do torturador, matador e ocultador de cadáveres Paulo Malhães. Bernardo Tabak, repórter do UOL, somou vinte na despedida.

No sábado à tarde, no cemitério de Nova Iguaçu, estiveram parentes do oficial reformado do Exército, que teve cinco filhos, e alguns vizinhos da Baixada Fluminense.

É possível que, anônimo, tenha passado por lá algum velho camarada de jornadas macabras dos tempos da ditadura ou chapa dos serviços de “segurança” _isto é, atividades de extermínio_ prestados pelo militar a próceres da contravenção.

Porém, não se viu um só bicheiro conhecido ou veterano manjado da repressão política. Abandonado por seus parceiros, o torturador ficou só.

Dos seus sócios e apoiadores em práticas como seviciar oposicionistas até a morte e depois cortar dedos, arrancar dentes e extirpar vísceras dos seus corpos, pode-se dizer que a idade dificulta a locomoção. Mas não são eles que, volta e meia, acorrem a convescotes que celebram a falecida ditadura?

Muitos vivem em outros Estados, é verdade. Mas o Rio continua sendo a concentração mais ruidosa dos partidários dos governos instaurados em 1964.

E o que dizer dos que, tão corajosos em vilipendiar, na internet, quem denuncia as excrescências da ditadura, não tiveram coragem de dar adeus ao coronel (ou tenente-coronel) que até o fim não se arrependeu dos seus crimes?

Prevaleceu a covardia.

Assim como eram covardes os agentes públicos que, aplicando política oficial, torturavam e assassinavam militantes sob custódia do Estado, são pusilânimes os saudosistas daquele tempo. A bravura vomitada em comentários de notícias, blogs e redes sociais se dilui na vida real.

Malhães, como se sabe, morreu na quinta-feira em circunstâncias ainda não esclarecidas.

Em meio a tantas suspeitas e versões, há uma evidência: o site “A verdade sufocada”, vinculado ao coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, trucidou a verdade ao informar na sexta-feira que Malhães havia recebido quatro tiros. Inexiste, até agora, relato de que ele tenha sido baleado.

Outro equívoco é supor que eventual colapso cardíaco do facínora tenha ocorrido enquanto ele regava suas orquídeas no sítio onde vivia. O militar estava em mãos de homens que invadiram sua residência, conforme relato da viúva. A perícia recolheu um travesseiro onde, de acordo com a senhora Malhães, havia marcas de sangue.

Para registro histórico: há pelo menos um episódio em que um opositor à ditadura morreu de colapso cardíaco, como informou o laudo da necropsia e testemunhou uma companheira. O que o laudo não contou e ela revelou é que o coração entrou em pane quando o guerrilheiro era torturado no pau-de-arara e recebia doses cavalares de choque elétrico.

Não se sabe ainda como Malhães morreu, mas não se ignora que ele foi atacado. Portanto, não teria morrido, e sim sido morto.

Sobre a identidade de quem o atacou há um sem-número de hipóteses. Só os adivinhões de sempre, alguns virgens de qualquer investigação jornalística ou policial, prescindem de apuração para saber o que ocorreu.

O certo é que, na hora derradeira, as viúvas da ditadura abandonaram Malhães.

Seus amigos e admiradores não foram valentes nem para ir até o cemitério.


A Copa renegada (da série ‘A minha Copa’, na ‘Folha’)
Comentários Comente

Mário Magalhães

No estádio Rose Bowl, jogadores festejam tetra com Parreira – Foto Pisco Del Gaiso/Folhapress

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Na série “A minha Copa”, a “Folha” publicou neste domingo um texto meu (para ler no jornal, basta clicar aqui).

Já haviam escrito na série, por ordem alfabética: Carlos Heitor Cony, Clóvis Rossi, Janio de Freitas, Jô Soares, José Miguel Wisnik, José Roberto Torero, José Trajano, Juca Kfouri, Marcos Augusto Gonçalves, Nando Reis, Paula Cesarino Costa, Rogério Gentile, Ruy Castro e Sérgio Dávila.

Compartilho abaixo as minhas memórias:

* * *

A Copa renegada

Não sei se rende diploma de pé-quente, fico encabulado de falar, mas nas três Copas que eu cobri, 94, 98 e 2002, a seleção alcançou a final.

Por conta de umas questões paralelas, não pude topar os convites para viajar à Alemanha e à África do Sul, nos Mundiais seguintes, e deu no que deu.

Copa é Copa.

Guardo como reminiscência cara a decisão no México-70, acompanhada em preto e branco pela TV. Aos seis anos, passei o jogo picotando jornal para atirar pela janela, na celebração do triunfo.

Vi ao vivo Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho devorando a bola na Coreia e no Japão, nos idos de 2002.

Nem com o timaço do tri nem com o penta da turma de erres, contudo, eu fui tão feliz como no título renegado por tantos brasileiros que desdenham o tetra como nódoa a macular a camisa canarinho.

Não há do que se avexar. Depois de cinco frustrações, inclusive com o escrete dos sonhos regido por Telê em 82, a conquista da Copa dos EUA inebriou com a vitória gerações que só conheciam o fracasso e outras que já não se lembravam de como era vencer.

Assisti ao Bebeto embalando o bebê ao comemorar seu gol contra a Holanda. Vacilão, eu não notara na hora, no jogo anterior, que ele havia agradecido um passe do Romário com a declaração “eu te amo”.

Flagrei, com os colegas de jornal, o ônibus da seleção quebrado à beira do caminho. O gênio Antônio Gaudério fotografou com exclusividade os jogadores a pé no acostamento da rodovia. Furo!

Contaram-me sobre o harém cultivado por alguns dos nossos craques. Nem se o torneio se estendesse por meses eles dariam conta da infinidade de beldades que os assediavam feito beque no cangote.

Até o meu último grito de gol não apagarei da memória o mais perseverante exercício de tolerância que testemunhei. O protagonista? Carlos Alberto Parreira.

O cristão apanhou, e muito, sem deixar de oferecer a outra face. Acusavam-no de retranqueiro, e sua equipe liderava em chances de gol.

Avacalhado como avesso ao futebol-arte, o técnico prezava a posse de bola, antecipando o Guardiola do século 21.

Tinha excessivas precauções defensivas? Parreira ensinava: imagine o desgaste físico de sair atrás no placar com jogos sob o sol do meio-dia.

Numa tenda montada ao lado do campo da Santa Clara University, não se cansava de responder serenamente às perguntas mais implacáveis.

Ao bater a Itália nos pênaltis _alguém supõe que passar pelo Baresi era moleza?_, chegara o seu momento. Fosse um ressentido vulgar, Parreira teria ido à forra.

Eu o provoquei, instando-o a reagir à pancadaria recente, e ele repetiu que compartilhava o sucesso com todos. Os repórteres indagaram: por que não desabafava?; considerava-se um homem bafejado pela sorte?

Comportava-se assim porque esse era o seu jeito, disse o campeão, evocando a canção clássica: “Como diria o Frank Sinatra, it’s my way”.

É isso aí: Parreira citou Sinatra no tetra.

Dá para esquecer a Copa de 94?

 


Lugar bom para o torturador Paulo Malhães era a cadeia, e não o caixão
Comentários Comente

Mário Magalhães

O coronel Paulo Malhães presta depoimento na Comissao da Verdade, no Arquivo Nacional, nesta terça-feira (25)

Torturador e matador, Paulo Malhães não foi julgado – Foto Daniel Marenco/Folhapress

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

A morte do antigo torturador, matador e ocultador de cadáveres Paulo Malhães o livrou de possivelmente vir a ser julgado e condenado pelas violações de direitos humanos das quais ele foi autor durante a ditadura.

Entre seus crimes imprescritíveis, cometidos com a farda de oficial do Exército Brasileiro, estão o de tortura e o de ocultação de cadáveres. O coronel era criminoso confesso.

De acordo com interpretação em vigor da Justiça sobre a Lei de Anistia, imposta pela ditadura em 1979, Malhães não poderia ir a tribunal e ser punido pelos crimes que acumulou como agente do Estado.

Porém, um amplo movimento se desenvolve para que o Brasil se equipare a países que não consagram a impunidade e punem antigos repressores. Ninguém encarnava a violência do Estado no período 1964-1985 como Malhães, desde que ele relatou seus “feitos”.

À Comissão Estadual da Verdade do Rio e à Comissão Nacional da Verdade, o militar reformado disse que ele e seus parceiros, depois de matarem oposicionistas na tortura, cortavam seus dedos, arrancavam os dentes e extirpavam as vísceras. Tudo para eternizar o desaparecimentos dos prisioneiros, evitando sua identificação e impedindo que viessem a boiar, depois de atirados em rios.

Por mais características de monstro que Malhães exibisse (e ele exibia), sua principal condição não era a de vilão de filmes de terror, e sim a de funcionário público aplicado, que executava exemplarmente uma política de Estado, a da ditadura.

Malhães não praticou “desvios” ou “excessos”, e sim os crimes que o governo ordenava.

Ao ser morto na quinta-feira, em sua casa na Baixada Fluminense, escapou de vir a ser julgado como a democracia impõe. No seu caso, a impunidade sobrepujou os anseios de justiça.

Seu lugar era na cadeia, e não no inferno, onde no momento, se é que o inferno existe, ele confraterniza com torturadores como Cecil Borer, Sérgio Paranhos Fleury e Freddie Perdigão. Na fila, esperando para abraçá-lo, estão os carrascos da escravidão, os matadores do Estado Novo e os veteranos do Esquadrão da Morte. Adolf Hitler já lhe apertou a mão e deu as boas-vindas.

Ainda há muitos Malhães por aí, inclusive quem durante a ditadura estava acima dele na cadeia de comando.

Sobre sua morte, o pior seria descartar qualquer hipótese: crime de queima de arquivo por parte do aparato de extermínio do jogo do bicho (Malhães trabalhou para a contravenção), latrocínio, assassinato por antigos repressores da ditadura, mostrando o que pode acontecer com quem abre o bico, vingança por outras perversidades e querelas.

(Em tempo: o jornalismo oscila entre qualificar o septuagenário Paulo Malhães como militar da reserva ou reformado e como coronel ou tenente-coronel do Exército. Ele era reformado, ou seja, ao contrário do contingente da reserva, não poderia mais ser convocado para combater numa guerra, devido à idade.  Na hierarquia do Exército, o tenente-coronel está um posto abaixo do coronel. No cotidiano, contudo, é tratado também como “coronel Fulano”.)


Coronel Paulo Malhães, torturador da ditadura, foi assassinado, diz Ustra
Comentários Comente

Mário Magalhães

blog - ustra

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

O site “A Verdade Sufocada”, vinculado ao coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, informa que o coronel Paulo Malhães, que depôs à Comissão da Verdade sobre atrocidades da ditadura, foi assassinado hoje de manhã.

A mesma informação chegou à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília.

P.S.: está confirmada a morte de Paulo Malhães, em sua casa na Baixada Fluminense. A polícia investiga em que circunstâncias o veterano repressor morreu ou foi morto. Preferi não mexer na nota acima, que permanecerá em seu formato original.


Foto mostra corpo de DG com marca de tiro; delegado não vê erro da perícia
Comentários Comente

Mário Magalhães

Bala entrou pelas costas do dançarino – Foto reprodução “Extra”

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

O jornal “Extra” publicou hoje a fotografia acima, identificando-a como o cadáver do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, morto na madrugada da terça-feira no morro Pavão-Pavãozinho (leia reportagem aqui).

A imagem comprova que era possível ver, na creche onde o corpo foi encontrado, não apenas a perfuração, mas também o sangue e outros líquidos que escorreram em virtude do tiro.

Já se sabia, por meio do laudo de necropsia, que Douglas havia sido baleado. Os legistas concluíram que ele morreu por causa de hemorragia interna provocada pelo disparo.

Também era sabido que estava errada nota da Polícia Civil, da noite da terça, informando que “as escoriação [sic] de Douglas são compatíveis com a morte ocasionada por queda”.

A novidade documental no “Extra”, de enorme relevância, evidencia que era possível ver a olho nu o ferimento mortal.

Prefiro continuar acreditando que o equívoco da perícia não foi proposital, pois em seguida, no IML, se constataria o tiro. O que não apaga o erro grave.

Algumas questões:

a) por que o perito não viu o tiro? Não era preciso nem levantar a camisa de DG para enxergar. Cabe ao Estado do Rio responder;

b)  por que foi plantada a informação, que os meios de comunicação reproduziram, de que a morte por escoriações constava de uma perícia preliminar? Cadê o documento? Ontem, o delegado Gilberto Ribeiro disse que a nota se baseou em “comentário que o perito fez no local”. Comentário não é perícia;

c) a foto veiculada hoje apresenta o corpo em posição diferente da de outra imagem, exibida nesta semana pela TV Globo. O cadáver foi mexido antes de o perito chegar ao morro carioca? Se isso ocorreu, mais que um erro, pode configurar crime;

d) o delegado Gilberto Ribeiro afirmou, sobre a nota da Polícia Civil omitindo o tiro: “Não necessariamente é uma falha da perícia”. De quem seria, então?

e) como já sugerido pelo blog, deveria haver investigação sobre as falhas pericial e policial ao fornecer informação sem lastro nos fatos;

Novos depoimentos podem contribuir para elucidar a morte de Douglas. De acordo com os policiais militares que estavam no morro, o artista teria sido baleado durante tiroteio dos PMs com traficantes.

A mãe de DG tem convicção de que, além de baleado, seu filho foi torturado.

Na terça-feira, no começo da noite, Edilson Silva dos Santos, homem com perturbações mentais, foi morto a bala no morro ou em um acesso. Neste momento não havia troca de tiros com traficantes, mas um protesto de moradores, reprimido pela PM. Até o momento, a Polícia Militar não assumiu também essa morte.


40 anos da Revolução dos Cravos: Ponte 25 de Abril já se chamou Salazar
Comentários Comente

Mário Magalhães

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Hoje faz 40 anos que os portugueses derrubaram a ditadura salazarista. Tim-tim.

Com a Revolução dos Cravos, a ponte sobre o rio Tejo que homenageava o ditador Salazar mudou de nome. Passou a se chamar 25 de Abril.

Depois os “portugueses”, no sentido preconceituoso de pouco sábio, são eles, e não nós, viventes de um país em que escolas, ginásios e até uma ponte mantêm o nome de próceres da ditadura.

Em 2004, em jogo de legenda, a seleção portuguesa dirigida por Felipão venceu a Inglaterra nas quartas-de-final da Eurocopa. Em casa, acabaria perdendo a final para a Grécia.

Então colunista esportivo da “Folha”, escrevi as maltraçadas abaixo.

* * *

Dona Luísa, seu Júlio e Felipão

O nome dele, com certeza, era Júlio. O dela, se a memória por uma vez não trai, Luísa. Beiravam os 80 anos. Viviam em um apartamento de quarto andar na rua Santa Marta, Lisboa. Pertinho da avenida da Liberdade, onde ontem multidões de portugueses festejaram o triunfo.

Seu Júlio falava pouco. Dona Luísa compensava -falava pelos dois. Tinha uma obsessão desde meio século antes, quando o tipo pacato do marido a ninguém causava impressão. “O Júlio não é parvo, não é parvo”, repetia.

Eu adorava provocar-lhes: “Passei hoje pela Ponte 25 de Abril”.

“Ponte Salazar!”, retrucavam, furiosos, insistindo no velho nome já trocado.

Ela subia a escadaria em espiral, do prédio antigo sem elevador, e suspirava cansada: “Ai, que saudade do António”.

O dito cujo, ditador António de Oliveira Salazar, um dia parecera-lhe imortal. Morrera muito tempo atrás.

Depois de 16 anos de Revolução dos Cravos, ganhavam uma pensão magra. Em compensação, o aluguel, congelado, saía mais barato que um engradado de garrafinhas de um sumo de maçã chinfrim e saboroso cuja marca o tempo apagou da lembrança. Não poderiam ser despejados enquanto vivessem.

Alugavam dois quartos para engordar as finanças. Passei semanas morando ali. Quando me assentara em Cascais, fui assistir com eles a um confronto célebre da Copa de 90: Inglaterra e Camarões, 2 a 2 no tempo normal, 1 a 0 para os europeus na prorrogação. Conosco estava um jovem engenheiro do interior, o Miguel, que continuava por lá.

Dona Luísa e seu Júlio torciam pelos ingleses. Miguel e eu, pelos camaroneses. Os velhinhos foram calando. Olharam-se.

Até que ela, incrédula, constatou, na única vez que a ouvi falar baixinho: “Ê, pá! Vocês estão a torcer para os pretos…”.

“Claro”, confirmamos.

“Por quê?”

Não resisti: “Quem sabe não é por isso mesmo…”.

Odiavam os africanos que acorriam a Portugal em busca de trabalho. Também encrencavam com brasileiros, de todas as raças. “Isso tudo já foi nosso”, comentou seu Júlio, quando a TV exibiu reportagens sobre colônias de antanho.

Outros tantos portugueses não iam com a cara dos brasileiros que desembarcavam onde outrora haviam embarcado seus antepassados. Era uma reticência atávica. Por séculos, mandaram gente sem fim para além-mar. A nação que construiu a Escola de Sagres acostumou-se com seus emigrantes. Não com os imigrantes que agora acolhia com pé e meio atrás. Os brasileiros não contribuíam. Nos jornais, éramos mais assíduos nas páginas de polícia.

O sucesso de Luiz Felipe Scolari na seleção portuguesa talvez indique que as coisas tenham mudado. Pelo menos um pouquinho. Nos tropeços, não falta dedo a acusar sua condição de estrangeiro. Mas, já por mais de uma semana, um país inteiro, Portugal, se comove com seu time dirigido por um técnico brasileiro.

Felipão diminui o oceano entre almas, no fundo, semelhantes. O que pensariam seu Júlio e dona Luísa?

(“Folha de S. Paulo”, 25 de junho de 2004)


Nota da Polícia Civil omitindo tiro expõe mistério sobre morte de dançarino
Comentários Comente

Mário Magalhães

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

O secretário de Segurança do Estado do Rio, José Mariano Beltrame, afirmou nesta quarta-feira, sobre a investigação dos incidentes no morro Pavão-Pavãozinho que resultaram em duas mortes:

“Não quero antecipar proteção aos policiais, mas não quero condená-los preliminarmente. Preciso de um indício mínimo que seja para fazer isso [afastamento dos PMs]. No momento são várias teses, muita especulação. Não quero tomar nenhuma atitude antecipada”.

O secretário está certo em não tomar decisões apressadas e levianas, embora a retirada ao menos temporária de alguns policiais militares do trabalho externo possa ser adequada medida preventiva, para não levar ainda mais tensão à favela fincada entre Copacabana e Ipanema. E talvez para evitar pressão sobre eventuais testemunhas.

Se o secretário, com razão, rejeita conclusões açodadas, como explica a nota divulgada na noite de terça-feira sobre a morte do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG?

A Polícia Civil, subordinada à secretaria comandada por Beltrame, informou aos jornalistas que “as escoriação [sic] de Douglas são compatíveis com a morte ocasionada por queda” (conferir reprodução acima, veiculada em reportagem do UOL).

A apreciação teria sido feita por peritos criminais do Estado.

Bastou o cadáver do artista de 26 anos chegar ao Instituto Médico-Legal para se constatar que ele foi atingido por um tiro e morreu de hemorragia interna.

Por que a Polícia Civil divulgou uma informação contrária aos fatos?

É importante fixar o contexto. No momento em que a nota era veiculada, moradores do Pavão-Pavãozinho se manifestavam contra a Polícia Militar, acusando-a de ter sido responsável pela morte de Douglas.

No protesto, Edilson Silva dos Santos, um homem jovem com perturbações mentais, foi morto a bala. A PM não informou em que circunstâncias Edilson foi atingido. Que eu saiba, também não assumiu que o tiro partiu de policiais.

No horário da nota distribuída anteontem, estavam no ar os telejornais locais do Rio. Não afirmo que a Polícia Civil tenha fraudado de propósito a verdade (não creio nisso, explico abaixo), porém sua versão se prestava, mesmo sem errar por querer, a tentar baixar a voltagem. Como quem diz: Douglas não foi morto a bala, mas por cair do alto de um prédio. Isto é, foi acidente, e não incidente.

O nervosismo do momento é retratado pelo erro de português na nota da assessoria, fruto, é claro, não de ignorância, mas de pressa (já  cometi equívocos piores).

Não sei se Beltrame anunciou investigação sobre os peritos que sugeriram que Douglas morreu de queda.

Penso _inexiste ironia aqui_ que os peritos disseram, em observação preliminar, que o dançarino morreu numa queda, e não de tiro, porque não viram a perfuração. Erraram sem querer. Não foram desonestos.

Nenhum servidor público faria uma afirmação a ser desmoralizada logo depois pelos médicos-legistas.

Por que, na hipótese de inexistência de dolo, os peritos (ou o perito) não viram a marca do tiro?

Por pior que fosse a iluminação, a posição do cadáver e as condições de exame, eles teriam observado a perfuração se houvesse sangue em torno dela. Eles não viram o tiro porque inexistia sangue em torno da perfuração?

Cabe aos peritos responderem, mas a nota da noite de terça-feira parece ter sido esquecida, também pelo jornalismo.

Perguntei há pouco a um tarimbado perito criminal se ele já viu não haver sangramento na perfuração a bala. Nunca, ele respondeu.

E se a pessoa já estivesse morta quando foi baleada, indaguei.

Ele explicou que, se o sangue já estivesse coagulado, não escorreria.

Acrescentei: e não haveria pressão arterial para ocorrer sangramento.

Evidentemente, não sugiro que tenha ocorrido isso, um tiro num cadáver para ocultar outra razão da morte.

Mas é inegável que carece de esclarecimento o motivo que levou a Polícia Civil a divulgar a nota de anteontem.

Havia marcas de sangue ao redor do local onde Douglas foi encontrado, em paredes, por exemplo. Mas não era necessariamente sangue provocado pelo tiro, e sim por escoriações, talvez ocasionadas por queda (estivesse ele vivo ou morto ao cair).

A mãe dele insiste que o filho foi torturado até a morte por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora.

A PM sustenta que o dançarino do programa “Esquenta” foi atingido durante tiroteio com traficantes e que não é possível saber, por enquanto, de quem partiu o disparo.

Em meio a tantas dúvidas, incluindo o mistério do teor da nota da Polícia Civil, algumas certezas:

1) a PM costuma encarar a população das favelas como inimiga, aliada de criminosos, quando na verdade a esmagadora maioria dos moradores é vítima da bandidagem;

2) a nota da Polícia Civil continha erro grave de informação;

3) seria melhor, como no caso Amarildo, a Divisão de Homicídios assumir plenamente a investigação, e não apenas colaborar com ela.


No Dia Mundial do Livro, uma entrevista sobre a biografia ‘Marighella’
Comentários Comente

Mário Magalhães

blog - central da memoria vale

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Shakespeare e Cervantes morreram em 23 de abril. Hoje é o Dia Mundial do Livro!

Na quarta edição do programa Central da Memória, a Central 3 coloca no ar o podcast com uma entrevista minha sobre a biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras).

A conversa, que muito me honrou, com João Ferraz, Paulo Jr. e Xico Malta pode ser ouvida clicando aqui.

Os convidados anteriores do Central da Memória foram Antônio Pedro Tota, Eduardo Giannetti da Fonseca e Cláudio Gonçalves Couto.


Alguém ainda consegue acreditar nas versões da Polícia Militar do RJ?
Comentários Comente

Mário Magalhães

Barricadas queimam em acesso do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana – Foto Lucas Landau/Reuters

 

( O blog está no Facebook e no Twitter )

Eu seria muito leviano se dissesse ter certeza das circunstâncias em que o dançarino DG, 25 ou 26, morreu ou foi morto (a conjugação verbal muda a história) no morro Pavão-Pavãozinho.

E seria muitíssimo ingênuo se acreditasse, sem provas irrefutáveis, na versão da Polícia Militar do Rio de Janeiro sobre o episódio.

Também ignoro como se deu a morte a bala do cidadão Edilson da Silva Santos, 27, alegadamente durante o protesto de ontem dos moradores da favela contra a morte de DG, cujo nome de registro, que só se conheceu na desgraça, era Douglas Rafael da Silva Pereira.

Estou mais por fora ainda sobre o menino de 12 anos que, de acordo com testemunhas, teria sido ferido. Até o momento em que escrevo, a PM nada fala.

Mas a convicção, em todos os casos, é a mesma: é impossível se fiar, sem desconfiar, nos relatos da PM. Esse sentimento, que se alastra, não é só meu.

Lembram-se do Amarildo? Até a investigação desmascarar as mentiralhadas de agentes da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, a PM negava a morte sob tortura e a ocultação do cadáver do pedreiro.

E da Claudia Silva Ferreira, baleada durante operação da PM no morro da Congonha e arrastada até a morte por um veículo da corporação? A inverossimilhança tingiu os depoimentos dos policiais envolvidos.

Sobram exemplos.

A Polícia Civil não tem se saído muito melhor.

Ontem,  soltou nota divulgando que análise do Instituto Médico-Legal mostrara escoriações do dançarino do programa “Esquenta” “compatíveis com morte ocasionada por queda” (leia aqui reportagem do UOL).

Mais tarde, o “Jornal da Globo” revelou que o artista foi morto, conforme declaração de óbito do IML, por “hemorragia interna decorrente de laceração pulmonar decorrente de ferimento transfixante no tórax”.

Em linguagem de gente, isso costuma significar que uma bala entrou e saiu. Antes, a Polícia Civil só descrevera escoriações. Por quê?

No caso Amarildo, a atuação do delegado Orlando Zaccone foi decisiva para impedir manobra dentro da Polícia Civil para livrar os PMs da suspeita de crime. Onde está Zaccone? Caiu em desgraça.

Há uma UPP no Pavão-Pavãozinho, morro fincado entre Copacabana e Ipanema. A mãe de DG afirmou: “[Meu filho] foi torturado pela PM da pacificação até a morte”. Ela contou ter visto marcas de botas no corpo do filho, que teria sido surrado.

E o jornalismo ainda se refere a “favela pacificada”. Santa hipocrisia!

Alguém ainda consegue acreditar nas versões da PM?

Parece aquela história do garotinho que, brincando, grita por socorro quando mergulha no mar. Quando o afogamento é para valer, ninguém o leva sério. Mesmo quando a PM é sincera, muitas pessoas mantêm o ceticismo.

A violência dos policiais militares contra os moradores é um dos principais motivos das dificuldades do programa de UPPs. Os PMs encaram o povo da favela como inimigo, aliado de traficantes e bandidos em geral. Por isso atiram e matam inocentes.

No Rio e no Brasil, a polícia odeia pobre.

A redução, descartando o lero-lero promocional, do programa a operações de guerra, sem contrapartida robusta de apoio social, também faz as UPPs patinarem.

Por interesse político, as UPPs foram ampliadas sem que houvesse recursos humanos para isso. PMs, mais de 1.600, existem para expulsar pobre de ocupação de prédio e terreno abandonados, mas não para protegê-los dos criminosos que infernizam a vida dos trabalhadores, sobretudo os que vivem em favelas.

A lei mandou “desocupar”? A lei também ordena garantir a segurança dos cidadãos. O governo estadual tem suas prioridades.

Poucos cariocas ligaram para a matança de ao menos dez jovens no complexo da Maré em junho do ano passado.

Os policiais se complicam ao reproduzir na zona sul o que fazem no subúrbio, na zona oeste e na Baixada. A Rocinha fica grudada a São Conrado. O Pavão-Pavãozinho, a dois bairros de classe-média para cima, a considerar o pessoal do asfalto.

Há muitas dúvidas e suspeitas sobre o que ocorreu ontem.

A certeza é que a palavra da Polícia Militar, por sua própria culpa, tem carecido de credibilidade.

Que São Jorge, cujo dia se comemora hoje com feriado aqui no Rio, nos proteja.