Torturador bom é torturador preso: lugar do coronel Malhães é na cadeia
Mário Magalhães
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Se não está claro, enfatizo: o título acima constitui uma boutade. Inexiste torturador bom. Mesmo quando, na forma rigorosa e escrupulosa da lei, termina atrás das grades, que é seu justo lugar. Jamais o torturador tem boas causas. O torturador representa o mal.
À Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, o coronel reformado Paulo Malhães havia dito que ele e seus parceiros do Centro de Informações do Exército cortavam dedos, arrancavam arcadas dentárias e extirpavam as vísceras de presos políticos mortos na tortura. O propósito era impedir o reconhecimento dos corpos, se fossem encontrados. E que os cadáveres, atirados em rios, não viessem a boiar (leia aqui).
O oficial e seus cúmplices não violaram os direitos humanos necessariamente em virtude de patologias psíquicas. Eles atuaram na condição de agentes públicos. Isto é o fundamental: a ação foi do Estado, contra cidadãos que estavam sob sua custódia.
Nesta terça-feira, Malhães voltou a depor, desta feita à Comissão Nacional da Verdade (aqui). Na essência, manteve o testemunho: torturou, matou e ocultou corpos. Cumpria o seu dever, supõe.
O matador reforça a convicção de que a tortura contra opositores era política de Estado e que os desaparecimentos forçados tinham a chancela da alta hierarquia das Forças Armadas, portanto dos governantes da ditadura (1964-1985). As ordens vinham de cima, ele esclarece.
O coronel Malhães não deveria estar solto, mas preso.
A Lei de Anistia de 1979 não tem nem uma vírgula anistiando torturadores e autores de execução, muito menos responsáveis por desaparecimentos forçados. Essa livre e desmiolada interpretação advoga a impunidade.
E se tivesse? Nenhuma tirania tem o direito de se auto-anistiar. O Congresso Nacional, naquele tempo, havia sido descaracterizado, por um sem-número de cassações, a introdução de senadores biônicos (sem voto popular), a proibição de partidos políticos e a ausência de amplas liberdades nas eleições.
O presidente da República, general Figueiredo, era um ditador. Isto é, concentrava poderes exacerbados sem ter recebido mandato popular (havia sido eleito indiretamente).
O crime de tortura é imprescritível.
O de desaparecimento forçado é considerado crime continuado pelo direito internacional: enquanto o corpo não aparece, o crime é permanente.
O mundo melhora quando veteranos da repressão do III Reich, das ditaduras latino-americanas, do Khmer Vermelho e outros tantos verdugos são democraticamente julgados, condenados e cumprem penas, mesmo quando nonagenários.
O coronel Paulo Malhães circulando livremente e fazendo apologia da tortura ofende a memória de suas vítimas e humilha o país que busca liquidar ou minimizar a impunidade.
Impunidade não combina com democracia.
Orgulhoso, ele conta o que fez. Assisti-lo com a mesma frieza com que ele narra suas covardias, sem exigir que passe pelos tribunais e seja punido, equivale a sinal verde para que, um dia, tudo volte a acontecer como na ditadura instaurada há 50 anos.
As consciências democráticas não clamam por vingança, olho por olho, dente por dente. O coronel Malhães no pau de arara consagraria suas ideias. Ele merece é julgamento civilizado e exemplar, como um réu igual aos outros, nos conformes da lei.
E aí? Vai ficar tudo por isso mesmo?