Bellini e Almir Pernambuquinho: padrinho e afilhado, amigos para sempre
Mário Magalhães
( O blog está no Facebook e no Twitter )
Em 1993, quando a morte de Almir Pernambuquinho completou 20 anos, escrevi na ''Folha'' uma reportagem sobre sua vida alucinante e seu esquecimento. A matéria acabou publicada também em ''Viagem ao país do futebol'' (DBA/1998), livro com fotos do Antônio Gaudério e textos meus.
O maior prazer na apuração foi conhecer o herói Bellini. Um cavalheiro.
Bellini se foi. Em reverência à sua memória e gratidão por suas façanhas, reproduzo o relato cujo protagonista é Almir, mas o grande amigo, daqueles para sempre, é Hideraldo Luiz Bellini.
Gracias, viejo!
* * *
Brigão, bom de bola e esquecido
Vinte anos depois de sua morte numa briga de bar, o jogador Almir Moraes Albuquerque, o Almir Pernambuquinho, foi esquecido no Rio. Os rastros da sua passagem por Copacabana, onde viveu em períodos intercalados nas décadas de 1950, 60 e 70, foram apagados.
Ao chegar ao Vasco em 1957, vindo do Recife, Almir foi morar no bairro onde a bossa nova nasceria. Aqui, inventou o futevôlei no fim dos anos 1960, rememora seu amigo de infância e confessor Fausto Neto. Num bar da avenida Atlântica, à beira-mar, assassinaram-no na madrugada de 6 de fevereiro de 1973.
“Só saio de Copacabana atrás de muito dinheiro ou morto”, costumava bravatear. Morreu como jogava, violentamente. Na antologia do esporte, Almir é o maior brigão da história do futebol brasileiro. Quebrou pernas, enfrentou no braço times inteiros e, com fúria e coragem, empurrou o Santos à conquista do bicampeonato mundial, em 1963.
Estaria completando 56 anos. Os vinte de sua morte passaram em branco. “A memória do país é assim”, lamenta o padrinho de Almir, o ex-jogador Bellini. “Sua memória no Rio se apagou”, confirma o jornalista Fausto Neto. “Uns poucos ainda falam dele nos botecos da rua Miguel Lemos”, conforma-se o cronista esportivo Hans Henningsen, espanhol celebrizado por Nelson Rodrigues como Marinheiro Sueco. Hans encontrava-se com Almir no Bar do Nicola, na rua Constante Ramos. Almir bebia cerveja. Um habitual vizinho ilustre de botequim, Nelson Rodrigues, só tomava cafezinho e água.
O Bar do Nicola é hoje o restaurante VinSanto. O Rio Jerez, bar onde Almir foi baleado na cabeça e morreu, mudou de nome para Sindicato do Chopp. No prédio onde morava Elói Lima, o Japonês, amigo de Pernambuquinho que sobreviveu à briga de 1973, ninguém se lembra dos dois. Os restos de Almir não estão mais no cemitério São João Batista, onde o corpo foi enterrado na gaveta 229 da quadra treze. Foram transferidos para o Recife em 1978, a pedido da família. As pegadas de Almir sumiram do Rio.
Homofóbico, ele ironicamente morreu no Rio Jerez, ao lado da Galeria Alaska, ainda hoje point de homossexuais e travestis. Numa mesa, gays disseram gracinhas e jogaram bolas de papel em Almir. Ele se levantou e deu um sopapo num. Logo foi chamado de covarde por três portugueses e uma argentina de uma mesa vizinha. Partiu para o pau _essa versão, colhida a quente pela polícia e pelos repórteres, foi comum a testemunhas que simpatizavam ou não com Almir, bem como aos garçons que assistiram ao pugilato e ao crime.
Quando o antigo jogador surrava o português José Salazar, o pai adotivo do rapaz, Artur Garcia Soares, disparou com uma pistola automática. A mesa de Almir tinha quatro pessoas. Ele e Alberto Russo morreram. Elói Lima foi baleado na perna. A namorada de Almir, Eunice Ferreira de Souza, escapou.
Dias depois da abertura do inquérito, o assassino confesso viajou para Portugal, e nunca mais se teve notícia dele. Os dois delegados do caso e o advogado de defesa já morreram. No Rio, poucos se lembram da história _e de Almir.
* * *
Antes de morrer, Almir deu o mais impressionante depoimento que o Brasil conheceu sobre os bastidores do futebol, publicado na revista Placar. Contou que ele e muitos outros se drogavam para jogar. “Tomei bolinha para enfrentar o Milan”, confidenciou, sobre a final do Mundial de 1963 no Maracanã, quando substituiu Pelé e se tornou o herói do título.
Na mesma partida, segredou, o árbitro argentino Juan Brozzi teria sido subornado pelo Santos e permitido a Almir “bater em quem quisesse”. Uma paulada de Pernambuquinho em Amarildo empolgou o time.
Suas garra e valentia contagiavam dentro e fora do campo. Ao ver da janela o jogador enfrentar uma turma inteira, João Saldanha, outro valentão, aderiu. “Botamos os caras pra correr”, escreveu o técnico e comentarista.
No Vasco desde 1957, Almir sagrou-se campeão carioca ao lado do zagueiro Bellini e do atacante Vavá. Foi companheiro fiel de Pelé no grupo que treinava para a Copa de 58. Durante a preparação, perdeu o entusiasmo e acabou cortado do time que triunfou na Suécia. “As cartas estão marcadas”, choramingava junto a Bellini, que até hoje discorda.
No Santos, foi reserva de Pelé. Jogou na Argentina e na Itália. Voltou ao Rio, pelo Flamengo, sendo campeão ao lado dos meias Carlinhos e Nelsinho, hoje treinadores.
Balearam-no duas vezes: na perna, em um entrevero de 1963 em Santos, e na cabeça, dali a dez anos, quando o mataram. Pernas, quebrou ao menos duas: uma de Hélio, do América, outra de Jadir, do Botafogo. Numa homenagem disparatada, recebeu do Jornal dos Sports um troféu do Certame de Técnica e da Disciplina.
Morreu aos 35 anos, separado da primeira mulher, e deixou um casal de filhos. No fim, mantinha-se com pouco dinheiro, do aluguel de dois imóveis que lhe restavam. Andava triste em fevereiro de 1973. No começo do mês, morrera atropelado seu amigo Perereca. No velório, Almir pediu:
“Me leva contigo, Perereca.”
Almir colocou uma aliança em um dedo do amigo, solteiro, e outra no cadáver de uma mulher da sala ao lado. “É para ele não chegar sozinho ao céu”, sussurrou.
* * *
Na espetacular confissão que vomitou a Fausto Neto e Maurício Azedo, pouco antes de morrer, Almir registrou a mais notável catarse do futebol. O depoimento foi publicado em 1973 na Placar e editado no livro Eu e o futebol. Algumas frases:
“Eu fui um marginal do futebol.”
(Autodefinição sincera.)
“Dei-lhe [no goleiro Ubirajara, do Bangu] um soco no estômago. Ele caiu e se levantou logo para revidar, enquanto Ari Clemente me dava um soco. Eu estava cercado de jogadores do Bangu, mas fui enfrentando todos eles: um pontapé num, um soco noutro, uma corrida em cima do outro, até que todo mundo entrou na briga (…) Eu estava uma fera (…) Ia dando cacete em quem encontrava.”
(Sobre a final Flamengo x Bangu do campeonato carioca de 1966.)
“Amarildo vinha saçaricando, queria impressionar o público, estava naquela de mostrar que era o Possesso, apelido que ganhou na Copa do Mundo de 62. Mas possesso ali era eu. Corri em diagonal na direção dele, avisei ao Ismael e ao Mauro para fazerem a cobertura, disse logo que aquele era meu. ‘Deixa esse filho da mãe comigo! Agora ele vai ver!’ Foi um toco só. Ele caiu se contorcendo.”
(Sobre a final Santos x Milan, do Mundial de 1963.)
* * *
O pernambucano Almir era atacante, tinha dezenove anos e desembarcava no Rio. O paulista Bellini, oito anos mais, era um zagueiro consagrado. No ano seguinte, 1958, levantaria a taça Jules Rimet na primeira conquista de uma Copa do Mundo pelo Brasil. O primeiro era boêmio, e o segundo, avesso à noite de Copacabana. Tornaram-se grandes amigos, moraram juntos. O mais velho foi padrinho de batismo (!) e de casamento do mais novo.
O encontro de Almir com Bellini tinha tudo para dar errado, mas não deu. Além da amizade, venceram juntos no futebol. Em 1958, conquistaram o campeonato carioca pelo Vasco. Um ano mais tarde, brigaram juntos contra a seleção uruguaia, ganhando no braço e na bola (3 a 1).
Aos 63 anos, dedicado a ensinar futebol a garotos de onze a quinze anos no Centro Olímpico Ibirapuera, em São Paulo, Hideraldo Luiz Bellini ainda se emociona ao falar do biafilhado.
Quando o senhor conheceu Almir?
Quando ele chegou ao Vasco. Logo nos aproximamos. Já tinha o temperamento explosivo. Era valente, esquentado, terrível. Para dar uma ideia, num treino da seleção ele me deu uma solada que quase me quebra. Porque eu brinquei com ele, dizendo “não vem encher o saco”.
Qual a origem desse comportamento?
O pai dele tinha uma mercearia no Recife. À noite, entravam ladrões. O que não podiam levar estragavam. Misturavam açúcar com querosene, açúcar com álcool. Nos fundos da mercearia, era a residência. O pai dele começou, armado, a esperar os ladrões à noite. Saíram vários tiroteios.
Quando o senhor o levou para morar no seu apartamento, em Copacabana?
Foi logo depois de ele chegar. Tirei-o da concentração do Vasco porque era boêmio. Era preciso cuidado com ele, tinha um futuro brilhante. A mãe escrevia cartas lindas para o Almir, que me mostrava. Ela mandava ouvir o “seu Bellini”, dava conselhos.
Como o senhor se tornou padrinho de Almir?
A mãe dele era batista. O pai, católico. Ela disse ao marido: “Vamos deixar as crianças crescerem para decidir qual religião querem seguir.” A maioria ficou sem religião. Em 1958, quando o Vasco ganhou o campeonato carioca, um frade argentino que jogava futebol perto de São Januário foi nos cumprimentar. Eu falei, apontando para o Almir: “Frei, esse sem-vergonha não tem religião.”
E aí?
Brincando, eu falei: “Vamos batizá-lo.” O Almir topou. Peguei a filha de um dirigente do Vasco e falei que ela seria a madrinha. Eu decidi: “Vou ser o padrinho.” O frade me deu um catecismo. Em casa, eu o ensinava a rezar. Almir dava risada. “Vai ter que rezar e parar de molecagem”, eu dizia. Nós o batizamos numa igreja de Copacabana.
Como era o dia a dia de vocês?
Morávamos em Copacabana e tomávamos café num bar da rua Constante Ramos. Íamos de carona ou lotação para o Vasco. Não saíamos juntos porque eu dormia para treinar cedo. Ele sempre arranjava amigos boêmios. Eu falei: “Aqui o apartamento é meu, você não paga nada, mas tem horário.”
E não se divertiam?
A segunda-feira era livre, não tinha treino. Domingo dava para chegar mais tarde. Ele podia levar mulher para casa, mas no período da tarde. Acertávamos o horário. Das duas às quatro, o apartamento era para um. Das quatro às seis, para outro. Ele era mulherengo, era um garoto.
Já se envolvia em confusões?
Sempre. Um exemplo: ele ficou afastado de um jogo porque teve uma contusão na perna. Perto do bar aonde íamos havia um ponto de táxi. O Almir deu uma corridinha em frente ao ponto para atravessar a rua. Um motorista gritou: “Aí, garoto safado! Para jogar, está machucado, mas, para namorar, está correndo!” O Almir sentou a mão no cara. Os motoristas vieram reclamar comigo, o padrinho.
Na intimidade ele era mais amável?
Era fantástico. Vivíamos na casa de conselheiros do Vasco, dançávamos com as meninas filhas deles. Era bacaníssimo, fiel aos amigos. Mas tinha o outro lado: gostava de um barzinho, de cerveja, só cerveja. Para brigar com alguém, não precisava estar bêbado. Não se envolvia com drogas, na época. Mas tenho minhas dúvidas sobre a fase em que foi morto. Tinha umas companhias meio manjadas.
Como ele o convidou para padrinho de casamento?
Foi quando ele estava em São Paulo, no Corinthians. Mero acaso. Num sábado eu vim com o Vasco jogar contra a Portuguesa. Quando chego ao hotel depois do jogo, tem um bilhetinho: “Bellini, compareça à igreja nos Campos Elíseos. Por favor, para meu casamento. Almir.”
O casamento foi no sábado?
Sim. Eu fui para lá. Duas horas antes, se casava na mesma igreja o Éder Jofre. Quando eu estou chegando, o Almir está na frente da igreja. “O que aconteceu, Almir?”, perguntei. “Ele respondeu: “Você tem que ser meu padrinho.” Eu: “Mais uma vez, cabra-macho? Uma vez não chega?” O Almir explicou: “O meu sogro morreu hoje cedo. O padrinho ficou cuidando do corpo. Tem que ser você.” Na vida dele as coisas aconteciam assim. A morte do Almir foi muito estranha.
Não era previsível?
Não sei se você sabe. Um dia, um delegado no Rio deu uma batida em Copacabana. Chegaram no Almir, pedindo documento. Ele já pegou a mão no delegado. Os policiais o levaram num camburão. Ele já havia parado de jogar. Eu acho que o episódio teve influência no assassinato.
Quando foi a última vez que o senhor o viu?
Ele já havia parado de jogar. Foi no Rio. Estava gordo e com os cabelos caindo. No enterro, a mãe dele veio conversar comigo: “Quem me dera ele nunca tivesse se afastado do senhor.” Foi triste.