Os doces DOC de Pelotas
Mário Magalhães
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Em Pelotas (RS)
No Rio, a Casa Cavé é campeã _a autêntica, na rua Sete de Setembro, 137, e não a confeitaria da esquina.
Em Lisboa, desde os tempos em que lá vivia, eu como pastel de nata nos Pastéis de Belém _sim, eu sei que é point de turistas.
Em Pelotas, onde estou por estes dias, a pouco mais de uma hora da fronteira com o Uruguai, é difícil escolher entre tantas casas de doces. São muitas e são boas demais.
Numa reportagem publicada na Azul Magazine, em julho de 2013, escrevi sobre a capital nacional do doce.
Eis a matéria, na íntegra:
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Os doces DOC de Pelotas
Quem se acomoda em uma mesinha da Doceria Márcia Aquino, numa borda da praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas, pode se deleitar com a visão do piso de ladrilhos coloridos.
Se levantar a cabeça e percorrer com os olhos uma alameda da praça, no outro lado da rua, avistará a Fonte das Nereidas, um chafariz exuberante importado da França e inaugurado em 1873 na cidade gaúcha.
Em torno da praça, descortinam-se casarões do século XIX, expressão da arquitetura neoclássica e outras escolas. O cenário constitui herança da opulência do charque, a carne seca e salgada cuja produção se disseminou desde o último quarto dos anos 1700.
O negócio promoveu Pelotas a rincão mais abastado da velha província do Rio Grande do Sul, ao lado da capital, Porto Alegre. Em 2013, os dois municípios, separados por 250 quilômetros, passaram a ser ligados por voos da Azul.
O sobrado número 6, erguido em 1879, tinha como dono um barão do charque. Sob as sacadas, abrem-se pequenas janelas do porão, testemunho do abismo social dos tempos coloniais: ali, instalava-se a senzala onde sobreviviam os escravos.
Se o comensal deixar a doceria para trás e caminhar alguns passos à esquerda, dará com o Teatro 7 de Abril, de 1831, dos mais antigos do país. Se sair à direita, vai se deparar com o mercado público, de meados do século retrasado. Entre o teatro e o mercado, esculturas transformam a praça numa galeria a céu aberto.
Mas não é preciso se levantar da mesa para apreciar de perto uma obra de arte: basta pedir uma das guloseimas que celebrizaram Pelotas como a capital nacional do doce. E que desde o ano passado, com o certificado oficial de indicação de procedência, voltam a ser preparadas conforme a tradição consagrada no apogeu dos salões aristocráticos dos palacetes locais.
Com o selo de autenticidade concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, os Doces de Pelotas, agora com maiúsculas, têm de ser fabricados artesanalmente, na cidade e seus arredores, com o rigor e o encanto das receitas transmitidas de geração em geração.
Os doces daqui conquistaram o estatuto da cachaça de Paraty (RJ) e do café da Serra da Mantiqueira (MG), também Indicações Geográficas Brasileiras. Assim como, além da outra margem do Atlântico, queijo Gruyère e presunto Parma são denominações de origem controlada, DOC.
Somam 14 os doces chancelados, quase todos com matriz na doçaria portuguesa desembarcada com os imigrantes. A cultura doceira prosperou com pitadas de sal: a carne salgada _o charque_ era trocada por açúcar na Bahia, pois não se plantava cana no Sul.
A escalação dos doces é de se lambuzar: amanteigado, beijinho de coco, bem-casado, quindim, ninho, camafeu, olho de sogra, pastel de Santa Clara, papo-de-anjo, fatia de Braga, trouxas de ovos, queijadinha, broinha de coco e doces cristalizados de frutas (como as passas de pêssego).
A quatro quadras e meia da praça central, a confeitaria Delícias Portuguesas, na rua General Osório, oferece amostras soberbas dessa culinária dominada por açúcar e gemas de ovos. Lá eu devorei o pastel de Santa Clara. A época é boa: não há clima melhor para doces do que o inverno pelotense, com termômetros abaixo dos dez graus.
Os doces certificados não podem ser congelados, para preservar textura e sabor, o que impede exportação em larga escala. A validade máxima varia de sete a dez dias, ainda que sob refrigeração.
Conservantes e colorantes são vetados _o amarelo do quindim resulta genuinamente da cor da gema. O bem-casado é recheado com ovos-moles, sem o novidadeiro doce de leite. Leite condensado é sacrilégio nos “doces DOC” de Pelotas, e até leite de vaca é raríssimo.
“Tivemos que fazer pesquisas, resgatar o histórico das receitas”, recapitula Maria Helena Jeske, presidente da Associação dos Produtores de Doces de Pelotas. “Até maisena estavam pondo em ovos-moles”, horroriza-se.
Maria Helena conta que um cliente de Brasília jura se ajoelhar sempre que recebe suas remessas. Quem já provou um bem-casado de Pelotas sabe que a imagem não é figurada: esses doces merecem mesmo reverência.
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Selo expõe DNA das guloseimas
Os doces com indicação de procedência são servidos sobre a forminha de papel e um plástico chamado renda. Dois adesivos são colados na renda: um identifica o produtor, o outro informa um código e remete ao site www.docesdepelotas.org.br.
Digitando o código, a página esclarece a data de fabricação e a validade do doce. E rastreia todos os ingredientes, desde a origem. Sabe-se qual foi o fornecedor dos ovos e até quando pode ser consumida a farinha de trigo.
O conselho regulador da associação dos produtores verifica a obediência aos padrões, da receita à higiene. Inexiste estatística, mas é crescente em Pelotas a presença dos docinhos com selo de autenticidade.
Todos esses cuidados conspiram para o prazer de quem suspira por doces de excelência, que costumam custar menos de 3 reais a unidade.
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Terra de cultura e arte
Os doces eram servidos já nos antigos saraus literários e musicais de Pelotas, reduto de intensa vida cultural.
Por aqui passaram os franceses Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor, e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), naturalista. A cidade foi berço do escritor João Simões Lopes Neto (1865-1916). E projetou o cartunista e escritor Aldyr Garcia Schlee, criador da camisa canarinho da seleção.
Aldyr vive em Pelotas, perto de outros grandes artistas, como o compositor Vitor Ramil, a poeta Angélica Freitas e o quadrinista Odyr Bernardi. Vitor é irmão de Kleiton e Kledir, dupla pelotense.
Nas ruas e museus, veem-se esculturas de Antônio Caringi (1905-81) e pinturas de Leopoldo Gotuzzo (1887-1983). A Charqueada São João, onde foi filmada a minissérie A casa das sete mulheres, é aberta à visitação.
(Azul Magazine, julho de 2013)