A morte passou perto (boa sorte, Adriano!)
Mário Magalhães

Adriano regressou ao futebol ontem, pelo Atlético-PR, contra o The Strongest – Foto EFE/Hedeson Alves
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Se o Adriano reestreasse, dois anos depois do seu último jogo, por algum time aqui do Rio ou de São Paulo, certamente não haveria o pouco caso que confinou a partida do Furacão a um canal a cabo a que quase ninguém tem acesso.
O imperador entrou no finalzinho da vitória de ontem do Atlético-PR, 1 a 0 contra o boliviano The Strongest, pela Libertadores. Perdeu peso, emerge do inferno. Seu problema Adriano não é sem-vergonhice, mas a combinação de depressão e álcool.
Em 2009, ele dava mais uma volta por cima, conduzindo com o Pet o Flamengo a mais um título nacional. Escalado para escrever um perfil do atacante, eu soube que naquela semana ele não daria entrevista exclusiva, e não deu mesmo. Restou-me uma perguntinha em coletiva, mas não tinha nenhuma passagem mais saborosa para publicar.
Salvou-me o amigo Sérgio Rangel, que contou sobre os pastéis de uma avó do Adriano.
Pois eu fui à casa da dona Vanda, escutei suas histórias e provei os seus quitutes. Nos dias seguintes, uma romaria de colegas também a visitou.
Que bom que o Adriano voltou à labuta. Tomara que dê certo.
A reportagem de 2009 está abaixo, na íntegra.
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A morte passou perto
Misture meio quilo de farinha de trigo com um copo de óleo e outro de água morna. Adicione sal. Estire com o rolo e recheie com queijo minas. A quantidade de pastéis depende do diâmetro da boca do copo com que se corta a massa.
Frite em óleo muito quente, acompanhado de folha de louro ou dente de alho, para o óleo não queimar. Além de apetitoso, o pastel sai sequinho.
Foi esse quitute que encantou Ronaldo, em Milão, quando ele almoçou na casa do então companheiro de clube Adriano.
A paraibana Vanda França, avó materna do jovem contratado da Internazionale, passava temporada com o neto na Itália e brilhava na cozinha.
''Ronaldo comeu demais'', ela recorda. Depois, o hoje roliço jogador do Corinthians encomendaria mais pastéis ao colega, agora no Flamengo.
Tornaram-se amigos. Ronaldo era um astro planetário. Adriano despontava.
O ano de 2009 marcou a volta por cima dos dois. Ronaldo, 33, renasceu como jogador. Adriano, 27, emergiu do inferno e hoje tenta ser campeão. Em abril, estava morto. Era esse rumor que alvoroçava o Rio.
Após defender a seleção, ele não voltou à Inter e sumiu. Tagarelaram à sua mãe, Rosilda, que o filho falara em dar cabo à vida, desencantado com o futebol. E a namorada o deixara.
Adriano se enfurnou por dias em uma das favelas mais violentas do Rio, a Vila Cruzeiro, onde foi criado. Era ali, no complexo do Alemão, que o jornalista Tim Lopes apurava reportagem sobre drogas em 2002 quando traficantes o apanharam e o assassinaram.
Ainda criança, o coartilheiro do campeonato, 19 gols, assistira a um homem matar outro diante dele. A família lembra que o pai do menino, Almir, gritou ''Adriano!''. Em choque, o filho não conseguiu se mexer.
Mais à frente, foi a vez de Almir ser alvejado na cabeça por uma bala disparada em um bate-boca com o qual ele nada teria a ver. Por anos conviveu com o projétil, que não pôde ser retirado do crânio. Morreu do coração, em 2004.
Desencadeou-se o que o próprio Adriano reconheceria como depressão, combinada com abuso de álcool. ''Não conseguia dormir'', ''busquei refúgio'', contou semanas atrás, ao comentar o suicídio do goleiro Robert Enke, da seleção alemã, vítima de crise depressiva.
A morte é velha conhecida de Adriano. Muitos dos chapas de peladas tonificaram estatísticas de óbito. Vanda, 71, não se esquece de um em particular, Maguilinha. Ignora se quem o matou foi bandido ou polícia. ''Era muito amigo da gente.''
A avó morava na beira do campo do Ordem e Progresso, time da Vila Cruzeiro. O neto vivia mais adiante, no morro.
Até Adriano deslanchar, seu pai era office-boy. A mãe foi faxineira, funcionária de fábrica de roupas e vendedora ambulante de churrasquinho.
''Nossa família passou fome'', diz Vanda. ''O que é passar fome? É amanhecer e não ter pão para comer, café para tomar. É chegar a hora do almoço e não ter nada. Graças a Deus, ninguém deu para bandido.''
Suas sete filhas e o único filho, bombeiro hidráulico, já não moram na Vila Cruzeiro. Adriano presenteou os tios com casas na zona oeste.
A mãe e a avó moram juntas numa residência de classe média alta na Barra da Tijuca, perto da de Adriano. Vanda, que vivia de faxinas, segue sem escrever a receita de seus pasteis: ela só sabe assinar o nome.
Adriano ostenta símbolos de ascensão comum a futebolistas: carrões importados e coleção de affairs -foi visto, ou associado, com duas garotas do segmento degustação, a Mulher Moranguinho e a Mulher Caviar; e com uma panicat, chacrete contemporânea do ''Pânico na TV''. É pai de um casal.
Ele e Ronaldo sucumbiram na Copa de 2006. Têm regalias em seus clubes. No Flamengo, é raro Adriano participar do primeiro treino da semana, na terça. Já nem se explica por quê.
Ciclotímico, ficou fora do jogo contra o Corinthians no domingo por causa de uma queimadura. Culpou um acidente doméstico com lâmpada de jardim. Pode ser verdade, mas quase ninguém acreditou.
Porém, ele responde por 33,9% dos gols e 27,2% das finalizações certas do Flamengo, diz o Datafolha. É decisivo.
Indagado pela Folha, Adriano afirmou que permanecer no topo é mais duro que dar a volta por cima -no futebol e na vida. ''Para dar a volta por cima, basta você ter força de vontade, mas se manter ali no mesmo nível é muito difícil''.
''Na vida, tem que aprender sempre, tomar cuidado para não tropeçar. Eu tropecei algumas vezes e consegui me reconquistar devagarinho.''
(Mário Magalhães, ''Folha de S. Paulo'', 06.dez.2009)