Se os matadores permanecem impunes, novos Rubens Paiva serão assassinados
Mário Magalhães
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As viúvas da ditadura sofrem com uma nova peça, dessas que a senhora implacável chamada história costuma pregar: já não podem dizer que a afirmação de que o cidadão brasileiro Rubens Beyrodt Paiva foi assassinado e desaparecido em 1971 constitui intriga de revanchistas ensandecidos, esses ingratos incapazes de reconhecer alegados méritos da ditadura parida quase meio século atrás.
Agora, quem confirma a farsa do relato oficial sobre o sumiço de Rubens Paiva é um dos atores da encenação, o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos. Seu depoimento foi feito à Comissão da Verdade, em sua versão estadual no Rio (leia aqui).
O ex-deputado federal Rubens Paiva, cassado em 1964, foi preso em janeiro de 1971 e assassinado na tortura em dependências do Exército. Tinha cinco filhos, entre eles meu querido colega Marcelo.
Como se sabia que o militante oposicionista estava sob custódia do Estado, as autoridades inventaram a versão de que ele havia sido resgatado cinematograficamente por guerrilheiros urbanos. Um dos militares que o acompanhavam, conforme a mentiralhada, era Raymundo Ronaldo Campos, que na época participou da fraude e hoje se curva aos fatos: o relatório da Força não passa de obra de ficção.
A União já havia reconhecido o assassinato de Rubens Paiva. A novidade é um dos atores da trama confirmar: como em tantos episódios, o governo da época mentiu, para encobrir o extermínio, ilegal até para a legislação da ditadura.
Os assassinos de Rubens Paiva não foram identificados, muito menos punidos. Há quem sustente, inclusive o Supremo Tribunal Federal, que estariam protegidos pela Lei de Anistia, de 1979. Ocorre que não há nenhuma manifestação explícita daquela norma livrando de julgamento os autores de crimes imprescritíveis contra os direitos humanos, como tortura e desaparecimento forçado.
A Suprema Corte também erra. Não aprovou, em 1936, a entrega da alemã, comunista, judia e grávida Olga Benario para a SS nazista?
Mesmo se houvesse referência a torturadores na Lei de Anistia, o Brasil ainda vivia a ditadura. E ditadura não tem legitimidade e legalidade para se autoanistiar.
Imaginem se os próceres do III Reich tivessem se autoanistiado às vésperas da derrota de 1945. Alguma consciência digna seria contra que eles fossem julgados e condenados?
Até hoje o corpo de Rubens Paiva (1929-71) não apareceu. Como no caso Amarildo, também perpetrado por agentes públicos, embora este tenha sido crime comum, e não político.
Existe uma continuidade histórica entre um acontecimento e outro, separados por 42 anos e meio. A impunidade dos assassinos de Rubens Paiva e centenas de brasileiros durante a ditadura 1964-85 acena para o futuro: podem fazer de novo, que não vai dar em nada.
Os acusados de matar o pedreiro Amarildo estão em cana, mas não se constrangeram em torturá-lo e sumir com ele. No passado não rendeu castigo, por que renderia agora?
Ainda é tempo de responsabilizar os torturadores e matadores da ditadura. Levá-los aos tribunais serviria de advertência às futuras gerações: não reeditem a covardia, porque haverá punição.
Ou seja, deveriam prevalecer os mesmos valores que, justamente, castigaram genocidas da Alemanha, veteranos da Segunda Guerra, do Cambodja, da matança patrocinada pelo Khmer Vermelho, e da Argentina dos generais e seus sócios civis.
Quando crimes contra a humanidade são perdoados, reluz o sinal verde para tudo se repetir.
Não adianta conhecer a verdade se, de posse dela, o Brasil não ensina: quem torturar, executar e sumir com seres humanos vai pagar por isso.
E não basta responsabilizar somente quem sujou as mãos diretamente. É preciso esquadrinhar a cadeia de comando e punir os chefes, até a cúpula.
Muitos repressores já morreram, é verdade. Mas há uma legião deles viva. E impune.