História: Anselmo, um herói rubro-negro
Mário Magalhães
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Raul Plassmann, gigante do gol, relembrou hoje no ''Globo Esporte'' o episódio no qual o atacante Anselmo vingou companheiros que haviam sido abatidos covardemente pelo zagueiro chileno Mario Soto, na batalha épica das finais da Libertadores de 1981.
No programa da Globo, apareceram imagens em movimento da noite em que Anselmo foi à luta. O narrador da época o condenava. Sem o conhecimento do contexto da refrega, Anselmo pode sofrer ainda hoje os respingos da verborragia dos que o avacalharam como vilão.
Anselmo não é vilão, e sim herói da história do Flamengo. Um herói nas suas circunstâncias. Mas herói.
Foi o que contei anos atrás, ao reconstituir o episódio. A reportagem está abaixo.
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Herói esquecido não se arrepende de ‘soco vingador’
Foi uma frase só: ''Entra lá e dá uma porrada no cara!''.
É assim, palavra por palavra, que o funcionário público -de Portugal- José Antônio Cardoso Anselmo Pereira, 47, ainda se lembra da ordem que ouviu do técnico Paulo César Carpegiani 25 anos atrás.
Anselmo comprovou a identidade mostrando o passaporte brasileiro ao bandeirinha e entrou no gramado do estádio Centenário, em Montevidéu. Não se preocupou com a bola, mas com o zagueiro Mario Soto. Faltavam dois ou três minutos para o fim do jogo.
Não se esqueceria daquela noite: ''Olhei para o lado, e ele achou que eu ia fazer alguma coisa, porque saiu de perto de mim. Aí teve uma falta, uma bola parada. Quando tocaram a bola rápido, ele estava atrás de mim e passou correndo. Quando passou correndo, senti que ia passar ao meu lado. Virei para trás e dei uma porrada nele''.
Acertou a cabeça de Soto, que desabou. No próximo dia 23, o seu soco completa um quarto de século, e o Flamengo celebra o título da Taça Libertadores.
O timaço de Zico, Leandro, Júnior, Mozer, Tita, Andrade, Raul, Adílio, Nunes e companhia entrou para a história -conquistou o Mundial interclubes três semanas depois. Seus craques também.
Na semana seguinte ao triunfo sobre o Cobreloa, porém, talvez não houvesse para a torcida um herói como Anselmo. Esquecido e feliz longe do Brasil, hoje o antigo centroavante não se arrepende de uma das mais célebres agressões do futebol.
O nocaute que levou à idolatria instantânea feriu a carreira que despontava: Anselmo ficou marcado pela atitude, despediu-se do Flamengo meio ano depois e nunca mais defendeu um clube protagonista.
Não era para se arrepender? ''Não. Isso, não! Não é para dizer para alguém fazer, não é exemplo para nada, não tem nada a ver com futebol. Numa época foi até bom, numa época pequenininha. É quando se chega a herói, mas logo se é tratado como maluco, bandido, marginal. Se calhar me prejudicou muito. Mas foi feito.''
Missão
Seu gesto se juntou à antologia nacional que coleciona a cotovelada de Pelé no uruguaio Matosas na Copa de 70, a de Leonardo no americano Tab Ramos na de 94 e a ira de Almir Pernambuquinho, que enfrentou no braço todo o time do Bangu na decisão do Campeonato Carioca que o Flamengo perdeu em 1966.
A diferença é que Anselmo não bateu no calor da partida, não entrou para fazer um gol: seu desafio era derrubar o chileno chamado de ''O Verdugo'' pelos próprios companheiros.
Nos atuais tempos de Jogo Limpo, a campanha mundial contra a violência, talvez Anselmo fosse execrado. O Cobreloa pediu seu banimento de competições internacionais, mas não houve nenhuma punição.
O fervor da torcida se expressou em uma faixa exibida em meio à multidão que aclamou os campeões no Galeão: ''Anselmo vingador''. O colunista João Saldanha exaltou no ''Jornal do Brasil'': ''Eles acabaram levando o que Mario Soto levou, merecidamente, do Anselmo, que entrou em campo, foi lá, deu-lhe aquela cacetada e cumpriu a missão dele''.
Do Flamengo, Anselmo jamais recebeu homenagem.
Guerra
A guerra concluída no Centenário teve os movimentos iniciais na primeira das duas partidas das finais, no Maracanã. O Flamengo ganhou por 2 a 1, dois gols de Zico.
A segunda foi disputada em Santiago, no estádio Nacional, que oito anos antes servira de campo de concentração no golpe de Estado no Chile.
O Cobreloa fez 1 a 0 com méritos, mas produziu uma carnificina. O cotovelo de Mario Soto quase cegou o atacante Lico, cujo olho esquerdo desapareceu sob o hematoma, e abriu o supercílio de Adílio.
Atletas rubro-negros contaram que o rival golpeava com uma pedra na mão. Com a igualdade, foi preciso um terceiro jogo, em campo neutro.
Anselmo assistiu à batalha de Santiago pela TV, em casa, em Friburgo (RJ). No dia seguinte foi chamado para se incorporar às pressas à delegação, já que Lico não jogaria.
Senhor da bola, o Flamengo se impôs, Zico marcou dois, e a pancadaria prosseguiu. No finalzinho, título decidido, Soto acertou Tita com gosto.
O banco do Flamengo se levantou, revoltado, e Carpegiani mandou Anselmo entrar no lugar de Nunes e revidar. O soco, desferido de frente, fez o zagueiro girar 180 graus antes de cair. O time inteiro do Cobreloa correu para pegar o agressor.
Ele fugiu, escorregou, mas escapou. Foi expulso e levou dois rivais, inclusive Soto.
Jacaré
A vingança transformou o jogador de 22 anos em ídolo. Reserva, ele foi a Tóquio, mas não participou dos 3 a 0 sobre o Liverpool no Mundial.
Em 1982, se transferiu para o Botafogo-SP, cinco anos após chegar ao infanto-juvenil do Flamengo. Esteve em outras seis equipes antes de parar, em 1990, e se mudar para Portugal, onde já atuara.
Vive na localidade de Quarteira, a poucos metros do mar. Pacato, de cabelos grisalhos, acompanha a carreira de dois filhos jogadores de futebol.
Pega jacaré na praia, mergulha, pesca pargos e robalos, diverte-se em peladas. Cidadão de classe média, trabalha na contabilidade de uma escola. Torcia pelo Fluminense na infância. Trocou: ''Quem passa pelo Flamengo fica com o coração rubro-negro''.
Não recomenda que o imitem. Não guarda ressentimento, nem se considera injustiçado. E não disfarça o orgulho pelo épico da Libertadores e até mesmo pelo soco, catártico para a maior torcida do Brasil: ''As pessoas que viveram aquilo nunca vão esquecer''.
Carpegiani reconhece ter dado ordem
Como o sr. se lembra da conquista da Libertadores e do episódio com Anselmo?
O fato com o Anselmo é pequeno, diante da conquista. A responsabilidade foi minha. Pedi para ele entrar e dar o soco. Sou grato, porque o jogador me atendeu. Depois a direção não queria levá-lo ao Mundial. Bati o pé para ele ir.
O sr. sempre assumiu a ordem.
Pediram para eu dizer que não ordenara. Mas a responsabilidade foi toda minha. Fato negativo, mas ocorreu, em função da partida anterior.
Aos 57 anos o sr. mandaria um atleta fazer o que mandou aos 32?
Não. Aquilo foi num momento quente. Não tenho arrependimento, só que não faria de novo. E repudio quem fizer.
O agressor foi a vítima, diz agredido
Em novembro de 1981, Mario Soto tinha 31 anos e era o ''xerife'' do Cobreloa. A voz afável nada tem a ver com o lugar-comum associado a um vilão. Ele diz que o soco de Anselmo não o atingiu no estádio Centenário, ao contrário do que dizem testemunhas diversas.
O Flamengo reclamou da sua violência já no segundo jogo, em Santiago.
É como se jogava a Libertadores naquele tempo. O Cobreloa jogou como deveria.
O que o sr. lembra da agressão de Anselmo?
No campo pode ocorrer tudo. O ruim é que foi agressão programada. Pelo que sei, no hotel.
Carpegiani assume a ordem, mas no fim do jogo.
Tiro toda a responsabilidade do jogador. Anselmo foi vítima da decisão de Carpegiani.
Como foi?
Eu estava na metade do campo, e o nosso goleiro gritou ''cuidado!''. Anselmo não chegou a me acertar. A única ação antidesportiva foi a de Carpegiani. A mim não causou dano. Causou ao Anselmo.
(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 29/10/2006)