Blog do Mario Magalhaes

‘Irmãos e irmãs de Shakespeare’, por Karina Kuschnir

Mário Magalhães

metro passageiros turp

Desenho de Karina Kuschnir, feito com caneta nanquim

 

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A antropóloga, jornalista e professora universitária Karina Kuschnir tem se revelado sobretudo uma cronista inspirada.

E uma cronista rara, pela combinação de dois imensos talentos, o da prosa e o do desenho.

É difícil saber o que a Karina faz melhor, se escrever ou desenhar.

Para o tira-teima, o blog dela, amálgama de arte e inteligência, pode ser visitado aqui.

Acima, no desenho de passageiros do metrô carioca, e abaixo, no texto que acompanha a ilustração, compartilho uma amostra da cronista Karina.

Aposto que logo, logo seus trabalhos acabarão em livro impresso.

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Irmãos e irmãs de Shakespeare

Por Karina Kuschnir

“A maior de todas as libertações é a liberdade de pensar nas coisas em si”, disse Virginia Woolf, em 1928, numa conferência para mulheres. Vamos imaginar, ela diz, o que aconteceria “se Shakespeare tivesse tido uma irmã maravilhosamente dotada, digamos, Judith”. O irmão aprende os clássicos, latim, álgebra, torna-se um grande autor, encena para a rainha da Inglaterra. Judith não vai à escola, mal chegam-lhe os livros, aprende a cozinhar e a remendar meias; seu pai almeja um marido rico. Ela se recusa, foge de casa; quer escrever, criar, atuar! Todos riem. Desprezam a ideia de que a irmã de Shakespeare possa ter sonhos e talentos. Judith por fim descobre-se grávida de um oportunista e se mata numa noite de inverno.

Mulheres não podiam ter a genialidade dos homens naquela época, como nem hoje podem trabalhadores, humildes ou operários — perguntem ao bispo!, ironiza Virginia. Mas ela não quer esse destino.

O talento é andrógino, escreve Virginia. O artista precisa da mente livre. E a liberdade, acreditem, é uma renda modesta e um quarto com chave na porta. É o poder de contemplar e de pensar por si mesma.

É por isso que me comovem e é por isso que desenho os passageiros andróginos do metrô. Penso que são todos parecidos com Judith. Irmãos e irmãs de Shakespeare, aprisionados em seus destinos de transporte e sobrevivência. Virgínia pergunta à sua platéia se está sendo injusta. “Podemos tagarelar sobre a democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem pouco mais esperança do que tinha o filho de um escravo ateniense de emancipar-se até a liberdade intelectual de que nascem os grandes textos. (…) A liberdade intelectual depende das coisas materiais. E as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o começo dos tempos.”

Amo em Virgina seu gosto pelos aprisionados, pelas mulheres, pelo anonimato, pelo medo de escrever, pela inteireza. Ela lembra que os bilhões de seres humanos um dia foram gerados, alimentados e criados por suas mães. Ela chama de poetas todas as Judiths que não podem estar na sua platéia porque “estão em casa lavando a louça e pondo os filhos para dormir”. E nos convida a lutar, mesmo na pobreza e na obscuridade, para que um dia a irmã de Shakespeare nasça, viva e escreva sua poesia.

Foi pensando nesse texto de Virginia Woolf, que tanto impactou a minha vida de leitora, que trouxe esse desenho com os passageiros do metrô, os tranquilos e os cansados, os idosos e os leitores, os pais e as mães com seus filhos no colo. São mulheres que acordaram sem vontade de acordar, são funcionárias aflitas, professoras desanimadas, homens de olhar perdido, jovens entusiasmados ouvindo música. Eles me fazem companhia todos os dias; e me lembram de ser humilde, de que sou apenas mais uma nesse vagão.

Sobre o desenho: Fiz os passageiros a partir da observação direta, nos vagões do metrô entre as estações Botafogo e Uruguaiana, ao longo de seis páginas (uns dez dias) em um caderninho cinza, com caneta nanquim 0.1 mm ou 0.4 mm. Hoje escaneei as imagens e alinhei os diferentes tamanhos com a ajuda de um cut&paste no Photoshop (onde também joguei uma tinta meio cinza azulada em tudo). Tinha pensado em redesenhar cada uma das figurinhas para deixá-las uniformes e icônicas, mas depois resolvi que era mais congruente com o texto manter as imperfeições.

Sobre o texto citado: livro de Virginia Woolf, Um teto todo seu (ed. Nova Fronteira, 1985, tradução de Vera Ribeiro.) A publicação original é de 1929 e tem um título lindo: A room of one’s own. Li pela primeira vez esse livro em Belém (PA) numa versão xerox tirada na biblioteca da Uerj no início dos anos 1990. Em 2004, felizmente a Nova Fronteira lançou uma nova edição que comprei para dar de presente para todas as minhas amigas que ainda não tinham!