Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : setembro 2013

No sinistro Estádio Nacional, em Santiago, o zagueiro do Cobreloa sangra dois rubro-negros; em Montevidéu, Anselmo se vinga com um soco, e o Flamengo conquista a Libertadores
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Mário Magalhães

Em 1981, Anselmo vinga em Montevidéu a pancadaria de Santiago – Fotos do grande Almir Veiga

 

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Nunca estive no Chile da ditadura, mas a minha memória afetiva tem respingos de lá. Em 1981, o Flamengo conquistou a Libertadores, numa série de três partidas decisivas contra o Cobreloa. A segunda foi marcada por agressões, no mesmo estádio onde as forças do general Augusto Pinochet haviam enclausurado, torturado e matado, oito anos antes. Um quarto de século mais tarde, reconstituí aquelas batalhas épicas.

*

Herói esquecido não se arrepende de ‘soco vingador’

Foi uma frase só: “Entra lá e dá uma porrada no cara!”.

É assim, palavra por palavra, que o funcionário público -de Portugal- José Antônio Cardoso Anselmo Pereira, 47, ainda se lembra da ordem que ouviu do técnico Paulo César Carpegiani 25 anos atrás.

Anselmo comprovou a identidade mostrando o passaporte brasileiro ao bandeirinha e entrou no gramado do estádio Centenário, em Montevidéu. Não se preocupou com a bola, mas com o zagueiro Mario Soto. Faltavam dois ou três minutos para o fim do jogo.

Não se esqueceria daquela noite: “Olhei para o lado, e ele achou que eu ia fazer alguma coisa, porque saiu de perto de mim. Aí teve uma falta, uma bola parada. Quando tocaram a bola rápido, ele estava atrás de mim e passou correndo. Quando passou correndo, senti que ia passar ao meu lado. Virei para trás e dei uma porrada nele”.

Acertou a cabeça de Soto, que desabou. No próximo dia 23, o seu soco completa um quarto de século, e o Flamengo celebra o título da Taça Libertadores.

O timaço de Zico, Leandro, Júnior, Mozer, Tita, Andrade, Raul, Adílio, Nunes e companhia entrou para a história -conquistou o Mundial interclubes três semanas depois. Seus craques também.

Na semana seguinte ao triunfo sobre o Cobreloa, porém, talvez não houvesse para a torcida um herói como Anselmo. Esquecido e feliz longe do Brasil, hoje o antigo centroavante não se arrepende de uma das mais célebres agressões do futebol.

O nocaute que levou à idolatria instantânea feriu a carreira que despontava: Anselmo ficou marcado pela atitude, despediu-se do Flamengo meio ano depois e nunca mais defendeu um clube protagonista.

Não era para se arrepender? “Não. Isso, não! Não é para dizer para alguém fazer, não é exemplo para nada, não tem nada a ver com futebol. Numa época foi até bom, numa época pequenininha. É quando se chega a herói, mas logo se é tratado como maluco, bandido, marginal. Se calhar me prejudicou muito. Mas foi feito.”

Missão

Seu gesto se juntou à antologia nacional que coleciona a cotovelada de Pelé no uruguaio Matosas na Copa de 70, a de Leonardo no americano Tab Ramos na de 94 e a ira de Almir Pernambuquinho, que enfrentou no braço todo o time do Bangu na decisão do Campeonato Carioca que o Flamengo perdeu em 1966.

A diferença é que Anselmo não bateu no calor da partida, não entrou para fazer um gol: seu desafio era derrubar o chileno chamado de “O Verdugo” pelos próprios companheiros.

Nos atuais tempos de Jogo Limpo, a campanha mundial contra a violência, talvez Anselmo fosse execrado. O Cobreloa pediu seu banimento de competições internacionais, mas não houve nenhuma punição.

O fervor da torcida se expressou em uma faixa exibida em meio à multidão que aclamou os campeões no Galeão: “Anselmo vingador”. O colunista João Saldanha exaltou no “Jornal do Brasil”: “Eles acabaram levando o que Mario Soto levou, merecidamente, do Anselmo, que entrou em campo, foi lá, deu-lhe aquela cacetada e cumpriu a missão dele”.

Do Flamengo, Anselmo jamais recebeu homenagem.

Guerra

A guerra concluída no Centenário teve os movimentos iniciais na primeira das duas partidas das finais, no Maracanã. O Flamengo ganhou por 2 a 1, dois gols de Zico.

A segunda foi disputada em Santiago, no estádio Nacional, que oito anos antes servira de campo de concentração no golpe de Estado no Chile.

O Cobreloa fez 1 a 0 com méritos, mas produziu uma carnificina. O cotovelo de Mario Soto quase cegou o atacante Lico, cujo olho esquerdo desapareceu sob o hematoma, e abriu o supercílio de Adílio.

Atletas rubro-negros contaram que o rival golpeava com uma pedra na mão. Com a igualdade, foi preciso um terceiro jogo, em campo neutro.

Anselmo assistiu à batalha de Santiago pela TV, em casa, em Friburgo (RJ). No dia seguinte foi chamado para se incorporar às pressas à delegação, já que Lico não jogaria.

Senhor da bola, o Flamengo se impôs, Zico marcou dois, e a pancadaria prosseguiu. No finalzinho, título decidido, Soto acertou Tita com gosto.

O banco do Flamengo se levantou, revoltado, e Carpegiani mandou Anselmo entrar no lugar de Nunes e revidar. O soco, desferido de frente, fez o zagueiro girar 180 graus antes de cair. O time inteiro do Cobreloa correu para pegar o agressor.

Ele fugiu, escorregou, mas escapou. Foi expulso e levou dois rivais, inclusive Soto.

Jacaré

A vingança transformou o jogador de 22 anos em ídolo. Reserva, ele foi a Tóquio, mas não participou dos 3 a 0 sobre o Liverpool no Mundial.
Em 1982, se transferiu para o Botafogo-SP, cinco anos após chegar ao infanto-juvenil do Flamengo. Esteve em outras seis equipes antes de parar, em 1990, e se mudar para Portugal, onde já atuara.

Vive na localidade de Quarteira, a poucos metros do mar. Pacato, de cabelos grisalhos, acompanha a carreira de dois filhos jogadores de futebol.

Pega jacaré na praia, mergulha, pesca pargos e robalos, diverte-se em peladas. Cidadão de classe média, trabalha na contabilidade de uma escola. Torcia pelo Fluminense na infância. Trocou: “Quem passa pelo Flamengo fica com o coração rubro-negro”.

Não recomenda que o imitem. Não guarda ressentimento, nem se considera injustiçado. E não disfarça o orgulho pelo épico da Libertadores e até mesmo pelo soco, catártico para a maior torcida do Brasil: “As pessoas que viveram aquilo nunca vão esquecer”.

 

Carpegiani reconhece ter dado ordem

Como o sr. se lembra da conquista da Libertadores e do episódio com Anselmo? 

O fato com o Anselmo é pequeno, diante da conquista. A responsabilidade foi minha. Pedi para ele entrar e dar o soco. Sou grato, porque o jogador me atendeu. Depois a direção não queria levá-lo ao Mundial. Bati o pé para ele ir.

O sr. sempre assumiu a ordem.

Pediram para eu dizer que não ordenara. Mas a responsabilidade foi toda minha. Fato negativo, mas ocorreu, em função da partida anterior.

Aos 57 anos o sr. mandaria um atleta fazer o que mandou aos 32?

Não. Aquilo foi num momento quente. Não tenho arrependimento, só que não faria de novo. E repudio quem fizer.

 

O agressor foi a vítima, diz agredido

Em novembro de 1981, Mario Soto tinha 31 anos e era o “xerife” do Cobreloa. A voz afável nada tem a ver com o lugar-comum associado a um vilão. Ele diz que o soco de Anselmo não o atingiu no estádio Centenário, ao contrário do que dizem testemunhas diversas.

O Flamengo reclamou da sua violência já no segundo jogo, em Santiago. 

É como se jogava a Libertadores naquele tempo. O Cobreloa jogou como deveria.

O que o sr. lembra da agressão de Anselmo?

No campo pode ocorrer tudo. O ruim é que foi agressão programada. Pelo que sei, no hotel.

Carpegiani assume a ordem, mas no fim do jogo.

Tiro toda a responsabilidade do jogador. Anselmo foi vítima da decisão de Carpegiani.

Como foi?

Eu estava na metade do campo, e o nosso goleiro gritou “cuidado!”. Anselmo não chegou a me acertar. A única ação antidesportiva foi a de Carpegiani. A mim não causou dano. Causou ao Anselmo.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 29/10/2006)


‘Uma voz pela liberdade ecoa no estádio da morte’: Juca Kfouri evoca João Saldanha
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Mário Magalhães

João Saldanha, o comentarista que o Brasil consagrou – Foto reprodução

 

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Por Juca Kfouri

*

O avião veio do Rio, parou em São Paulo e seguiu para Santiago. Estava bem vazio. A seleção brasileira ia jogar um amistoso contra a chilena, como preparativo para as eliminatórias da Copa de 86. Era maio de 1985, e o Chile ainda vivia sob a feroz ditadura do general Augusto Pinochet.

O jogo seria no estádio Nacional, recentemente reaberto depois de ter servido durante anos como cárcere, palco de tortura e de fuzilamento de presos políticos. No avião, vindo do Rio, encontro João Saldanha, o único. Sento-me ao seu lado, e engatilhamos mil conversas.

João era para ser ouvido. E eu não me cansava de ouvi-lo. Eis que, quando estávamos para pousar, ele bota a mão no meu braço e me diz, paternal, como às vezes gostava de fazer: “Olha aqui. Eu te conheço, e você me conhece. Você sabe que não sou de ter medo de nada, mas vou te avisar: a ditadura aqui não é mole. Eles somem com as pessoas, sejam elas quem forem, venham de onde vierem. Não vá bancar o herói e falar mal desses caras na tv porque eles vão estar ouvindo”.

Achei graça e o tranquilizei. Na noite anterior, ao ir me despedir de meu pai, ouvi dele coisa parecida: “Cuidado lá, filho. Não vá se meter a balão”. Eu já tinha três filhos, 35 anos, não era nenhuma criança e tinha razoável experiência política, ex-militante da ALN (grupo de resistência armada à ditadura brasileira) e do Partido Comunista Brasileiro, eterno partido do nosso João Saldanha.

Chegamos ao estádio, o narrador do sbt, Osmar de Oliveira, abre a jornada e me chama para os “primeiros comentários”. Sem me dar conta, tamanha a emoção de estar naquele lugar sinistro num momento em que, no Brasil, já vivíamos a reconstrução democrática, engato uma primeira e vou: “O estádio Nacional de Santiago desperta duas sensações antagônicas. Foi aqui que, em 1962, a seleção brasileira liderada por Mané Garrincha ganhou o bicampeonato mundial”. E engato uma segunda: “Mas foi aqui também que, em 1973, a ditadura chilena assassinou e prendeu milhares de patriotas que se insurgiram contra o golpe militar que derrubou o presidente socialista, democraticamente eleito, Salvador Allende”.

Osmar de Oliveira, para quem Saldanha havia recomendado “Segura esse cara”, me olha com olhar de espanto. E engato a terceira: “Aqui morreram patriotas como o compositor Victor Jara, que, antes de ser fuzilado, teve os dedos das mãos quebrados pelos militares chilenos para não poder tocar para os prisioneiros”. Por fim, a quarta: “Aqui morreram e estiveram presos muitos exilados brasileiros também”. E devolvo a palavra para Osmar.

Nem bem passados dois minutos, ele me cutuca. Na porta de nossa cabine, um cidadão de terno e cara de poucos amigos estaciona com ares de quem vai ficar. E fica até o fim do jogo. E nos acompanha ao jantar, ao hotel e ao aeroporto, às seis da matina do dia seguinte. João Saldanha não falava nada, só me fuzilava com o olhar, mas sem arredar pé de perto de mim o tempo todo.

Ao chegar em São Paulo, quando fui me despedir, ele abriu um sorriso e disse marotamente: “Parabéns. Você é o meu orgulho”.

(Extraído do livro “Meninos, eu vi”, de Juca Kfouri, editoras DBA/Lance!)

(Crônica pescada aqui, no Blog do Juca Kfouri)


Na várzea, a tragédia do Chile
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Mário Magalhães

Cena do filme “Machuca”, de Andrés Wood

 

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As ruas de Santiago fervilham na reta final do governo da Unidade Popular, antes do golpe comandado pelo general Pinochet e patrocinado pelos EUA em setembro de 1973. “Allende, Allende, o Chile não se vende”, gritam nas passeatas da oposição. “Allende, Allende, o povo te defende”, retrucam os partidários da coalizão liderada pelo socialista Salvador Allende.

A tensão não é menor em uma escola de elite. Um padre gringo, desses humanistas das antigas, inventou de abrir vagas gratuitas para pobres.
No colégio religioso, exclusivo para meninos das melhores famílias, o filho da madame passou a estudar ao lado do filho da lavadeira. Um dos alunos bem nascidos se chama Andrés Wood. No futuro, terá duas paixões: cinema e futebol.

Das memórias de criança, Wood fez “Machuca”, em cartaz no Brasil. O filme começa com Gonzalo Infante vestindo o uniforme de almofadinha, com gravata e blazer. Naquele dia, o padre Mc Enroe apresenta os colegas molambentos. Um deles, Pedro Machuca, está com seu único pulôver, furado, um furo que mesmo cerzido acaba sempre por se impor.

“Machuca” conta a história de dois amigos que se despedem da infância e a amizade entre quem mora numa casa bacaninha e num barraco sem esgoto. Mostra o que o Chile poderia ter sido e não foi.

A palavra “fútbol”, que eu tenha notado, não é pronunciada. Mas o futebol pontua o estado da alma. Na primeira vez que o sardento Gonzalito dá carona de bicicleta para o descendente de índios Machuca, eles atravessam um campo de areia, na entrada da favela. Numa das traves, garotos jogam uma pelada. O travessão de madeira, cansado, faz barriga para baixo.

Quando o golpe irrompe, Gonzalo vai à favela saber da sorte do seu chapa. No campo, veem-se apenas os restos de uma fogueira que já ardeu. Perto dos barracos, o menino assiste à tropa matando, leva um empurrão de um soldado e cai fora com lágrimas a cobrirem-lhe o rosto.

Tempos depois, ele pedala de volta. Desapareceu a favela que ficava além do campinho e aquém da cordilheira. Ninguém bate bola, ninguém mora mais ali. O Chile se transformou numa imensa cancha de futebol vazia.

Naquela época, o Chile me dizia duas coisas: fora lá que Garrincha ganhara a Copa de 62. E de lá viera o melhor zagueiro que eu conheceria, o Figueroa. Mais velho, descobri que foi onde fizeram, do maior estádio, um campo de concentração, tortura e morte.

Andrés Wood dirigiu o filme “Histórias de Futebol”. Não vi, mas não me surpreenderei se nele o futebol não disser tanto como em “Machuca”. Numa das últimas sequências, o padre Mc Enroe, corrido do colégio e substituído por um militar, come todas as hóstias, para não deixar nenhuma. “Este já não é um lugar sagrado”, lamenta. Como o campo de várzea, na tela, e o estádio Nacional, na tragédia chilena.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 21/01/2005)


Ficha do Chile mostra parceria com ditadura brasileira
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Mário Magalhães

Zuleika Alambert – Foto Assembleia Legislativa de São Paulo

 

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Uma troca de informações entre autoridades de segurança do Brasil e do Chile em 1977 mostra como funcionava, no “varejo”, a colaboração de regimes militares da América do Sul na repressão a militantes de esquerda.

Depois de receber um informe dando conta de que uma exilada brasileira (Zuleika Alambert) havia sido identificada no Chile com um codinome (“Léa Gomes Benevides”), os brasileiros pediram ajuda aos colegas andinos para saber se os dois nomes se referiam à mesma pessoa.

Os chilenos mandaram uma ficha com as impressões digitais da militante, o que provavelmente permitiu ao Exército brasileiro confirmar a identidade -“Léa” era de fato Zuleika.

O pedido de busca confidencial 794-77-A, emitido em 1º de agosto de 1977 pelo 1º Exército, no Rio, a pedido do CIE (Centro de Informações do Exército), pedia a comparação da ficha datiloscópica recolhida no Chile com alguma registrada no Brasil.

O DGIE (Departamento Geral de Investigações Especiais), a polícia política da ditadura no Rio à época, recebeu a solicitação dos militares -e respondeu não ter encontrado ficha de Zuleika.

O documento do 1º Exército foi achado pela “Folha” no Arquivo Público do Estado.

O golpe que levou o general Augusto Pinochet ao poder no Chile estava prestes a completar quatro anos e Zuleika Alembert já havia fugido.

Militante comunista, deputada estadual em São Paulo em 1947 pelo PCB, ela tinha chegado ao Chile no começo da década de 70. O país era então governado pelo socialista Salvador Allende. Centenas de exilados brasileiros moravam lá.

Ao se registrar, em 30 de dezembro de 1971, Zuleika usou um passaporte falso. Foi quando imprimiu as digitais. No dia do golpe, 11 de setembro de 1973, asilou-se na embaixada da Venezuela.

O modo de operação dos órgãos de informação dos dois países, num caso específico, como o da comunista brasileira, era a aplicação do convênio que reunia no “atacado” seis governos militares sul-americanos.

Em 1975, foi criada a Operação Condor, com a participação de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia. Mesmo antes desse protocolo havia ação conjunta contra militantes de esquerda.

A Operação Condor voltou a ser discutida agora no Brasil após um juiz argentino pedir esclarecimentos sobre o sequestro de três militantes do seu país no Rio em 1980. Os três nunca apareceram.

No Chile, os brasileiros sofriam severa vigilância. Um mês depois da derrubada do governo Allende, a agência do SNI (Serviço Nacional de Informações) no Rio distribuiu um informe detalhado sobre os brasileiros que haviam se asilado na embaixada da Argentina em Santiago.

Entre eles, estavam o hoje deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), o deputado estadual fluminense Carlos Minc (PT) e o guerrilheiro José Lavechia.

O guerrilheiro iria desaparecer em 1974, ao tentar voltar para o Brasil na fronteira com o Paraguai. Documentos mostram que os militares brasileiros esperavam Lavechia e cinco companheiros, que também sumiram.

O caso de Zuleika Alembert terminou bem para ela -cinco brasileiros desapareceram no Chile, sete na Argentina e um na Bolívia-, graças à fuga de 1973.

“Já na véspera eu achava que iria haver o golpe”, disse à “Folha” Zuleika, hoje com 77 anos. “Falei para o Ferreira Gullar (poeta, também ligado ao PCB): ‘Vou preparar tudo para cair fora. Eles vão bater aqui’. Larguei tudo dentro de casa”.

Ela se salvou na embaixada, fez um tratamento de rins na hoje extinta União Soviética e passou o resto do exílio em Paris.

Voltou para o Brasil em 1979. Atualmente, longe da militância partidária, diz só se interessar pelo movimento de mulheres.

(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 05/06/2000; Zuleika Alambert nasceu em 1922 e morreu em 2012) 


‘A vida é eterna em cinco minutos’, cantou Victor Jara. Mataram-no com 44 tiros
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Mário Magalhães

 

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Faltavam poucos dias para Victor Jara, a voz que encarnou os anos Allende, completar 41 anos, quando ele foi trucidado pela ordem parida no 11 de setembro de 1973. Mataram-no com 44 tiros _isso mesmo, quatro dezenas mais quatro unidades.

Clássico do cancioneiro chileno, um dos maiores sucessos do compositor se chama “Te recuerdo Amanda”. Um dos versos diz que “a vida é eterna em cinco minutos” (ouve-se a canção clicando na imagem acima). Conta a história de amor de dois operários, a moça do título e Manuel. Eram os nomes dos seus pais.

Até hoje seus assassinos não foram punidos. Como a história não terminou, um veterano militar que vive nos Estados Unidos tem o que temer, como escreveu Dorrit Harazim em artigo, para (não) variar, soberbo no domingo (a íntegra pode ser lida aqui). Termina assim:

“A última visão que Navia e seus companheiros tiveram de Jara foi do seu espancamento a golpes de fuzil na saleta do estádio. No final da mesma tarde, cruzaram o saguão principal para serem transferidos para o Estádio Nacional. Ali se depararam com cerca de 50 cadáveres espalhados pelo chão. Entre eles, o de Victor Jara.”

“Foi somente em 2009 que a investigação conduzida pelo juiz Miguel Vásquez conseguiu chegar ao nome do homem que teria apertado o gatilho do primeiro tiro contra a nuca do prisioneiro. Depois, o oficial teria ordenado aos soldados presentes que prosseguissem com a fuzilaria. Embora Pedro Barrientos negue jamais ter sequer cruzado com o músico, a família Jara espera que o Supremo Tribunal chileno encaminhe o aguardado pedido de extradição aos Estados Unidos.”

“Se Barrientos algum dia retornar, talvez se pergunte para que serviu tanta brutalidade. O Estádio Chile foi rebatizado de Estádio Victor Jara. As fitas máster das gravações do músico que a ditadura se empenhou em destruir foram laboriosamente substituídas por outras versões. Brotaram remixagens, remasterizações, foi lançada uma caixa com 9 CDs, republicada uma antologia com seus poemas. Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado. Hoje, Victor Jara teria 81 anos.”


Bloqueado pela censura, o ‘JB’ saiu sem manchete sobre o golpe no Chile
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Mário Magalhães

“Jornal do Brasil”, 12 de setembro de 1973

 

A primeira página do “Jornal do Brasil” de 12 de setembro de 1973 é um dos momentos mais criativos e altivos do jornalismo nacional. Qualquer faculdade que se preza transmite lições com base naquela edição.

Desde 1964 o Brasil vivia a sua ditadura. Censores oficiais davam plantão em muitas redações, decidindo que assuntos poderiam ser noticiados, e como.

Então editor-chefe do “JB”, Alberto Dines contou ao “Jornal da ABI”, em 2012, como tudo se passara:

“Uma das causas da minha saída do JB, em 1973, foi porque eu forcei isso. Quando houve o golpe militar no Chile, veio a ordem da censura para não dar manchete sobre a derrubada do Salvador Allende. Mas a ordem chegou tarde da noite e o Allende estava na manchete! A essa altura, eu já não fechava o jornal. Nós decidíamos a primeira página e eu ia para casa. Já me dava esse direito. O Lemos também já tinha saído e quem ligou foi o Maneco Bezerra [da Silva], excelente jornalista que trabalhava na oficina. Ele alertou da ordem e fui imediatamente para lá. Morava em Ipanema, pegava o Aterro [do Flamengo] e era fácil chegar ao prédio novo do JB naquela hora, quase 11 horas. Quando cheguei um dos superintendentes do jornal já estava lá, mas ele não se meteu. E aí eu falei: ‘Vamos obedecer. Não vamos dar na manchete. Vamos fazer um jornal sem manchete! Vamos contar a história com o maior corpo possível da Ludlow…’ esse era corpo 24, se não me engano… Contamos a história toda e ficou, digamos, um pôster sem manchete. O superintendente do jornal me perguntou: ‘Dines, você tem certeza mesmo que quer fazer isso?’. E eu respondi que nós estávamos obedecendo às autoridades. No dia seguinte o Armando Nogueira, que estava na TV Globo, me telefonou logo cedo: ‘Porra! Isto é uma revolução!’. A direção não criticou nem elogiou. Quem elogiou foram os bons jornalistas. A capa está reproduzida em um livro que organizei, Cem Páginas Que Fizeram História, com a reprodução de outras páginas importantes de vários jornais. Mas a verdade é que três meses depois eu fui demitido por ‘indisciplina’.”

No site do “Observatório da Imprensa”, o colega Mauro Malin contou a história daquela primeira página.  Seu texto, “A mais antológica das capas”, pode ser lido aqui. Foi nele que eu pesquei o parágrafo acima.

Se o “JB” saísse com um título insípido, o efeito seria muito menor do que o de um jornal sem manchete. É possível que mesmo a manchete mais incendiária não tivesse temperatura tão alta quanto a o diário sem cabeça, constrangido pela censura.

Sempre tive curiosidade de saber, afinal, qual seria a manchete, se o representante da ditadura não tivesse encrencado. Mandei um e-mail para o Dines, decano do jornalismo brasileiro, camisa 10 do “Observatório”, e perguntei.

Havia duas opções. Eis a resposta:

“A manchete mais objetiva seria: ‘Golpe derruba e mata Allende’. Se tivesse duas linhas poderia ser: ‘Golpe militar derruba e mata Salvador Allende’.”

“Quarenta anos depois, a manchete mais completa é: ‘Allende morto, nós censurados’.”

“Georges Clemenceau, que fez a manchete mais curta e mais célebre da história do jornalismo ( ‘J’Accuse…’), poderia nos socorrer com algo mais retórico e francês.”

Nós, jornalistas, que sofremos com nossas barbeiragens, reveses e frustrações, também temos grandes histórias para contar.

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Sob bombardeio, Allende se despede dos chilenos, em um dos discursos mais dramáticos do século XX
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Mário Magalhães

 

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Com o Palácio de la Moneda bombardeado por caças e tanques, Salvador Allende pronunciou sua derradeira mensagem aos chilenos, pelo último meio que lhe restava, a Radio Magallanes _antenas de outras emissoras já haviam sido destruídas.

Foi como se Getulio Vargas, em vez de deixar uma carta testamento em 1954, a tivesse lido ao vivo, com o Palácio do Catete sob o ataque dos militares golpistas.

Antes do sacrifício, Allende começou, 40 anos atrás: “Compatriotas, esta será seguramente a última oportunidade em que eu poderei me dirigir a vocês”.

Referiu-se aos generais que o enganaram: “Minhas palavras não têm amargura, e sim decepção”.

Resistiu: “Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar. Colocado em uma encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo”.

“A história é nossa e a fazem os povos”, declarou.

Manifestou gratidão a quem o levara ao governo: “Trabalhadores da minha pátria, quero lhes agradecer a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que só foi intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra de que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez”.

Nomeou os pais do golpe: “O capital estrangeiro, o imperialismo, unido à reação, criou o clima para que as Forças Armadas rompessem com sua tradição…”.

Sua voz não fraquejou: “Sempre estarei junto a vocês. Pelo menos, minha lembrança será a de um homem digno que foi leal à lealdade dos trabalhadores”.

Concluiu: “Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens superarão este momento sombrio e amargo, onde a traição pretende se impor. Saibam vocês que, muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras. Tenho certeza de que o meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, haverá uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição”.

Para ouvir a íntegra, com imagens daquele dia dramático, basta clicar na imagem acima.

No ano retrasado, estive no Museu da Memória, em Santiago, onde  o discurso de Allende pode ser ouvido. Uma visitante chorava.


Militares tomam poder e anunciam ‘missão de lutar pela libertação da pátria do jugo marxista’
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Mário Magalhães

 

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Um minuto, oito segundos e cinco décimos.

Foi o tempo que os comandantes das Forças Armadas e dos Carabineiros (polícia ostensiva) precisaram para ler o comunicado de 11 de setembro de 1973 que anunciou a deposição de Salvador Allende (ouça clicando na imagem acima).

No primeiro item, afirmaram que “o senhor presidente da República deve proceder a imediata entrega do seu alto cargo às Forças Armadas e aos Carabineiros do Chile”.

No segundo, declararam que estavam unidos para iniciar “a histórica e responsável missão de lutar pela libertação da pátria do jugo marxista”.

A ditadura durou 16 anos e meio.


Nixon e Médici: joint venture EUA-Brasil para derrubar Allende
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Mário Magalhães

Pinochet (esq.) e Médici: amigos de fé, irmãos camaradas – Foto reprodução

 

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Certa historiografia pouco afeita aos valores democráticos reconstitui a história sustentando que a queda de Allende foi uma reação à radicalização do presidente e à deterioração da economia chilena.

Essa interpretação omite que a instabilidade econômica foi em boa parte causada por ações dos golpistas, inclusive dos Estados Unidos, sabotando no mercado internacional os produtos de exportação do país andino.

E sonega que, desde o início do mandato presidencial de Allende, em novembro de 1970, já se conspirava para derrubá-lo por meios antidemocráticos.

A ditadura que vigorava no Brasil desde 1964 participou da trama, como veio a comprovar farta documentação. Em dezembro de 1971, o ditador Emílio Garrastazu Médici tratou do assunto na Casa Branca, em conversa com o presidente Richard Nixon, contou esta reportagem de Fabiano Maisonnave:

*

Médici e Nixon planejaram derrubar Allende

Em conversa com o colega americano Richard Nixon, o presidente Emílio Médici afirmou que “estava trabalhando” para derrubar o governo do socialista chileno Salvador Allende, revelam documentos liberados pelo Departamento de Estado dos EUA e compilados pelo instituto de pesquisa não governamental Arquivo Nacional de Segurança, aos quais a “Folha” teve acesso.

O encontro ocorreu no Salão Oval da Casa Branca, às 10h de 9 de dezembro de 1971. Do lado brasileiro, só Médici estava presente, deixando o Itamaraty de fora. Sem falar inglês, precisou da ajuda do general Vernon Walters, que tinha forte ligação com o Brasil -era o adido militar americano no golpe de 1964.

O outro participante foi o assessor de Segurança Nacional e futuro secretário de Estado Henry Kissinger, relator do encontro, revelado quase 38 anos depois. “É fantástico ver que Médici tenha mantido conversas no mais alto nível sem se fazer acompanhar por ninguém”, diz o pesquisador Matias Spektor. “A Casa Branca e o Médici acreditavam que o Itamaraty estava tentando frustrar a visita presidencial. Os diplomatas brasileiros não gostavam da ideia de tanta proximidade entre os presidentes.”

A visita de Médici ocorreu num momento em que o Brasil começava a ter uma política externa mais ativa, enquanto os EUA, embora preocupados com o avanço esquerdista na América Latina, estavam atolados na Guerra do Vietnã.

Anticomunistas convictos, os presidentes conversaram sobre ações para derrubar os regimes esquerdistas de Chile e Cuba e “evitar novos Castros e Allendes”, como define Nixon.

Médici, quase dois anos antes do golpe de setembro de 1973 liderado pelo general Augusto Pinochet, prevê que Allende seria derrubado “pelas mesmas razões” que João Goulart.

A conversa também aborda a instabilidade boliviana. Médici diz que convenceu o ditador paraguaio Alfredo Stroessner (1954-1989) a vender a energia da futura usina de Itaipu aos bolivianos, sob o argumento de que, “se a Bolívia não fosse ajudada, sem dúvida se tornaria comunista”. O pré-acordo nunca foi levado adiante.

Em outro momento, eles mostram preocupação com as gestões do Peru para a volta de Cuba à OEA (Organização dos Estados Americanos). É quando ocorre a única intervenção de Walters, que diz que o presidente esquerdista peruano, Juan Velasco Alvarado (1968-1975) tinha um filho com uma ex-miss “muito de esquerda em suas opiniões e associações políticas” e que isso lhe seria um problema caso saísse a público.

Para continuar falando sobre esses temas, Nixon propõe a criação de um “canal” de comunicação fora dos meios diplomáticos e diz que seu homem de confiança seria Kissinger.

Médici concorda e diz que confiava no seu chanceler, Mário Gibson Barbosa, que tinha um “arquivo especial em que todos os itens eram manuscritos (…) de forma que nem os datilógrafos tinham conhecimento deles”.

Na avaliação do ex-embaixador do Brasil nos EUA Roberto Abdenur, a conversa “não chega a ser uma surpresa”. “O que os dois fizeram foi selar, no mais alto nível político, e em termos de organizada colaboração, algo em que ambos os lados já de há muito se vinham empenhando.”

(“Folha de S. Paulo”, 16 de agosto de 2009)


DÉJÀ VU – Os EUA tramaram o golpe de 1973
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Mário Magalhães

Henry Kissinger, fã de futebol e de golpes de Estado – Foto reprodução

 

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Como no Irã em 1953, no Brasil em 64 e em outras frentes da Guerra Fria, os Estados Unidos conspiraram e atuaram no golpe no Chile. Com a progressiva liberação de documentos secretos norte-americanos, a conexão dos golpistas nativos com o Departamento de Estado e a Central Intelligence Agency cobriu-se de provas. É o que contaram três reportagens publicadas pela “Folha de S. Paulo”, abaixo reproduzidas.

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EUA tramaram meio de derrubar Allende

Entre os 16 mil documentos secretos divulgados na semana passada pelos Estados Unidos, existe um no qual se menciona um compromisso do presidente Richard Nixon de “fazer todo o possível para derrubar Allende”, já que haviam fracassado as tentativas de impedir sua posse.

O presidente chileno Salvador Allende morreu em 11 de setembro de 1973, no golpe liderado por Augusto Pinochet. Em 1976, o ditador pediu a seu amigo Alfredo Stroessner, então ditador do Paraguai, que providenciasse dois passaportes paraguaios aos agentes do Chile que meses depois matariam em Washington o chanceler chileno Orlando Letelier.

A CIA (serviço secreto dos EUA) informou o governo dos planos de Pinochet, mas o embaixador do país em Santiago não pressionou o ditador. Disse que o general poderia tomar como insulto a associação de seu nome a planos de assassinato político.

Os novos documentos acrescentam mais detalhes sobre o envolvimento norte-americano no golpe contra o presidente socialista. Exemplo: atas de 40 reuniões presididas por Henry Kissinger, o poderoso conselheiro de Segurança Nacional de Nixon, nas quais foram estudados modos de impedir a eleição de Allende, em 1970, e, depois, os meios de provocar sua queda.

O assassinato do general René Schneider, em 1970, fazia parte desses esforços. Os documentos da CIA que tratam do assunto saem bastante censurados, contudo. O mesmo ocorre com outros da Agência de Segurança Nacional, relativos ao golpe de 11 de setembro. Nixon pretendia estrangular economicamente o Chile de Allende inundando os mercados internacionais com cobre, a principal fonte de recursos do país.
Um relatório da CIA de setembro de 1972, exatamente um ano antes do golpe, dá conta ainda da convicção de Pinochet de que seria preciso derrubar Allende.

Assassinato de Letelier

A maior novidade que oferecem os papéis agora liberados -quarta e última série do projeto de divulgação de documentos sobre o Chile, iniciado por Bill Clinton a propósito da detenção de Pinochet em Londres- tem a ver com o assassinato de Letelier e de sua colega Ronni Moffitt. Seu carro explodiu no centro de Washington, na ação de terrorismo internacional de maior calibre perpetrada na capital dos Estados Unidos.

Vários documentos do Departamento de Estado revelam que Pinochet pediu pessoalmente a Stroessner que desse passaportes paraguaios com identidades falsas a Michael Townley, de origem norte-americana, e ao comandante Armando Fernández. Os dois eram agentes do antigo serviço secreto chileno, a Dina. O ditador paraguaio anuiu, mas Pinochet não conseguiu que os passaportes tivessem o visto da embaixada norte-americana.

Os dois agentes conseguiram entrar no país em agosto de 1976, com passaportes chilenos e identidades falsas. Trabalharam em sua embaixada. Não há registros de que suas atividades em Washington tenham sido investigadas. No mês seguinte, morreriam Letelier e Moffitt. Townley e Fernández foram condenados anos mais tarde nos EUA por esse duplo assassinato.

O general Manuel Contreras, chefe da Dina, foi julgado e condenado no Chile. Respondeu às tentativas norte-americanas de obter sua extradição com ameaças de revelar o envolvimento dos EUA no caso. Em 1991, a CIA destruiu o arquivo que mantinha sobre Contreras, seu ex-agente.

Antes do atentado contra Letelier, a CIA informou o Departamento de Estado da chamada Operação Condor, por meio da qual os regimes de exceção latino-americanos coordenavam suas atividades para destruir a ação de esquerdistas. O Departamento de Estado alertou seu embaixador em Santiago e pediu que comunicasse a Pinochet sobre suas reservas.

O embaixador, David Popper, respondeu que não faria nada: “O general poderia tomar como insulto qualquer insinuação de envolvimento em planos de assassinato”.

“Esses documentos permitem reescrever a história da ligação dos EUA com o Chile e a ditadura de Pinochet”, diz Peter Kornbluh, especialista em Chile do Arquivo de Segurança Nacional, entidade independente que fez campanha pela divulgação dos documentos.

Parte do material sai muito censurada, e Kornbluh diz acreditar que permanecem secretos papéis que poderiam provar definitivamente o envolvimento direto de Pinochet no assassinato de Letelier.

Para Samuel Buffone, advogado dos Leteliers e dos Moffitts (o marido de Ronni estava no carro, mas sobreviveu), os documentos constituem uma “prova convincente da direta participação de Pinochet” e deveriam ser tomados como “um importante passo em direção a um possível processo”.

(“Folha de S. Paulo”, Ricardo M. de Rituerto, do “El País”, 19 de novembro de 2000).

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EUA ajudaram no golpe que derrubou Allende

Documentos secretos que foram divulgados somente em novembro do ano passado pelos EUA comprovaram o que durante muito tempo foi só suspeita: que o país tramou e auxiliou a derrubada de Salvador Allende, presidente socialista do Chile que havia sido eleito em 1970.

Segundo os documentos, o então presidente norte-americano, Richard Nixon, havia prometido fazer “todo o possível para derrubar Allende”, após ter falhado nas tentativas de impedir a sua posse.

Allende morreu em 11 de setembro de 1973, dentro do Palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, durante o golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, então comandante do Exército.

Entre os documentos divulgados, estão as atas de 40 reuniões presididas pelo então chefe do Conselho de Segurança Nacional, Henry Kissinger, para estudar os meios para impedir a posse de Allende e, depois, os meios para provocar a sua queda.

Entre as ações dos EUA para enfraquecer Allende estava o financiamento aos partidos conservadores chilenos e ao principal jornal do país, o “El Mercurio”, no início dos anos 70, para fazer oposição ao presidente.

Os documentos revelaram ainda que a CIA (agência de inteligência dos EUA) informou o governo norte-americano sobre os planos de Pinochet de assassinar Orlando Letelier, chanceler no governo Allende, que vivia nos EUA.

Mesmo alertado com antecedência, o embaixador dos EUA em Santiago não pressionou Pinochet, alegando que ele poderia tomar como insulto a associação de seu nome a um plano de assassinato político. Letelier foi assassinado em 1976 em Washington por agentes da Dina (polícia política do regime militar chileno).

Em setembro do ano passado, o ex-chefe da Dina, Manuel Contreras, havia relatado que Pinochet o enviou a Washington em 1974 para pedir que a CIA instruísse os agentes chilenos. A CIA admitiu ter tido Contreras como colaborador entre 1974 e 1977.

Contreras está atualmente em prisão domiciliar no Chile, após ter ficado encarcerado por seis anos, condenado pelo assassinato de Letelier.

(“Folha de S. Paulo”, 20 de fevereiro de 2001)

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Kissinger e Nixon comentaram ajuda ao golpe do Chile

Num telefonema entre Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, e Richard Nixon, presidente americano de 1969 a 1974, Kissinger disse que os EUA teriam ajudado a criar as condições para o golpe militar que derrubou Salvador Allende, presidente socialista chileno, em 11 de setembro de 1973.

Transcrições do diálogo permaneceram secretas por mais de 30 anos e foram finalmente divulgados anteontem, no site do Arquivo Nacional de Segurança.

Kissinger disse que os jornais estariam “sangrando porque um governo pró-comunista foi derrubado. Quero dizer, em vez de celebrar… No período de Eisenhower, seríamos heróis”, afirmou. Dwight D. Eisenhower foi presidente dos EUA de 1953 a 1961, em plena Guerra Fria.

“Bem, nós não (…), como você sabe, nossas mãos não aparecem neste caso”, respondeu Nixon. “Nós não o fizemos. Quero dizer, nós os ajudamos (…) criamos as melhores condições possíveis (…)”, replicou Kissinger. “Isso é certo”, concluiu Nixon, de acordo com o documento.

O diálogo aconteceu em 16 de setembro de 1973, cinco dias após o general chileno Augusto Pinochet liderar o golpe militar contra Allende. Cerca de 3.000 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar chilena, que durou cerca de 17 anos.

Segundo Peter Kornbluh, especialista em Chile do Arquivo Nacional de Segurança, o documento é uma “prova cabal, nas palavras do próprio Kissinger, de que a administração Nixon contribuiu diretamente para criar o clima que possibilitou o golpe”.

No mesmo ano de 1973, quando esteve no Congresso logo após ser indicado secretário de Estado dos EUA, Kissinger negou participação no golpe contra Allende.

Nas últimas décadas, Kissinger tem sido frequentemente acusado de envolvimento com os regimes ditatoriais da América Latina dos anos 1970. Ele teria, por exemplo, ajudado a Operação Condor, uma aliança entre as ditaduras sul-americanas, entre elas o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, para perseguir opositores. Há, inclusive, acusações contra Kissinger em processos judiciais, além de pedidos de extradição.

Anteontem, o Arquivo Nacional de Segurança, um instituto de pesquisa de Washington que guarda documentos oficiais, liberou 20 mil páginas de gravações de conversas telefônicas de Kissinger entre 1969 e 1974.

(“Folha de S. Paulo”, 28 de maio de 2004)