No sinistro Estádio Nacional, em Santiago, o zagueiro do Cobreloa sangra dois rubro-negros; em Montevidéu, Anselmo se vinga com um soco, e o Flamengo conquista a Libertadores
Mário Magalhães
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Nunca estive no Chile da ditadura, mas a minha memória afetiva tem respingos de lá. Em 1981, o Flamengo conquistou a Libertadores, numa série de três partidas decisivas contra o Cobreloa. A segunda foi marcada por agressões, no mesmo estádio onde as forças do general Augusto Pinochet haviam enclausurado, torturado e matado, oito anos antes. Um quarto de século mais tarde, reconstituí aquelas batalhas épicas.
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Herói esquecido não se arrepende de ‘soco vingador’
Foi uma frase só: ''Entra lá e dá uma porrada no cara!''.
É assim, palavra por palavra, que o funcionário público -de Portugal- José Antônio Cardoso Anselmo Pereira, 47, ainda se lembra da ordem que ouviu do técnico Paulo César Carpegiani 25 anos atrás.
Anselmo comprovou a identidade mostrando o passaporte brasileiro ao bandeirinha e entrou no gramado do estádio Centenário, em Montevidéu. Não se preocupou com a bola, mas com o zagueiro Mario Soto. Faltavam dois ou três minutos para o fim do jogo.
Não se esqueceria daquela noite: ''Olhei para o lado, e ele achou que eu ia fazer alguma coisa, porque saiu de perto de mim. Aí teve uma falta, uma bola parada. Quando tocaram a bola rápido, ele estava atrás de mim e passou correndo. Quando passou correndo, senti que ia passar ao meu lado. Virei para trás e dei uma porrada nele''.
Acertou a cabeça de Soto, que desabou. No próximo dia 23, o seu soco completa um quarto de século, e o Flamengo celebra o título da Taça Libertadores.
O timaço de Zico, Leandro, Júnior, Mozer, Tita, Andrade, Raul, Adílio, Nunes e companhia entrou para a história -conquistou o Mundial interclubes três semanas depois. Seus craques também.
Na semana seguinte ao triunfo sobre o Cobreloa, porém, talvez não houvesse para a torcida um herói como Anselmo. Esquecido e feliz longe do Brasil, hoje o antigo centroavante não se arrepende de uma das mais célebres agressões do futebol.
O nocaute que levou à idolatria instantânea feriu a carreira que despontava: Anselmo ficou marcado pela atitude, despediu-se do Flamengo meio ano depois e nunca mais defendeu um clube protagonista.
Não era para se arrepender? ''Não. Isso, não! Não é para dizer para alguém fazer, não é exemplo para nada, não tem nada a ver com futebol. Numa época foi até bom, numa época pequenininha. É quando se chega a herói, mas logo se é tratado como maluco, bandido, marginal. Se calhar me prejudicou muito. Mas foi feito.''
Missão
Seu gesto se juntou à antologia nacional que coleciona a cotovelada de Pelé no uruguaio Matosas na Copa de 70, a de Leonardo no americano Tab Ramos na de 94 e a ira de Almir Pernambuquinho, que enfrentou no braço todo o time do Bangu na decisão do Campeonato Carioca que o Flamengo perdeu em 1966.
A diferença é que Anselmo não bateu no calor da partida, não entrou para fazer um gol: seu desafio era derrubar o chileno chamado de ''O Verdugo'' pelos próprios companheiros.
Nos atuais tempos de Jogo Limpo, a campanha mundial contra a violência, talvez Anselmo fosse execrado. O Cobreloa pediu seu banimento de competições internacionais, mas não houve nenhuma punição.
O fervor da torcida se expressou em uma faixa exibida em meio à multidão que aclamou os campeões no Galeão: ''Anselmo vingador''. O colunista João Saldanha exaltou no ''Jornal do Brasil'': ''Eles acabaram levando o que Mario Soto levou, merecidamente, do Anselmo, que entrou em campo, foi lá, deu-lhe aquela cacetada e cumpriu a missão dele''.
Do Flamengo, Anselmo jamais recebeu homenagem.
Guerra
A guerra concluída no Centenário teve os movimentos iniciais na primeira das duas partidas das finais, no Maracanã. O Flamengo ganhou por 2 a 1, dois gols de Zico.
A segunda foi disputada em Santiago, no estádio Nacional, que oito anos antes servira de campo de concentração no golpe de Estado no Chile.
O Cobreloa fez 1 a 0 com méritos, mas produziu uma carnificina. O cotovelo de Mario Soto quase cegou o atacante Lico, cujo olho esquerdo desapareceu sob o hematoma, e abriu o supercílio de Adílio.
Atletas rubro-negros contaram que o rival golpeava com uma pedra na mão. Com a igualdade, foi preciso um terceiro jogo, em campo neutro.
Anselmo assistiu à batalha de Santiago pela TV, em casa, em Friburgo (RJ). No dia seguinte foi chamado para se incorporar às pressas à delegação, já que Lico não jogaria.
Senhor da bola, o Flamengo se impôs, Zico marcou dois, e a pancadaria prosseguiu. No finalzinho, título decidido, Soto acertou Tita com gosto.
O banco do Flamengo se levantou, revoltado, e Carpegiani mandou Anselmo entrar no lugar de Nunes e revidar. O soco, desferido de frente, fez o zagueiro girar 180 graus antes de cair. O time inteiro do Cobreloa correu para pegar o agressor.
Ele fugiu, escorregou, mas escapou. Foi expulso e levou dois rivais, inclusive Soto.
Jacaré
A vingança transformou o jogador de 22 anos em ídolo. Reserva, ele foi a Tóquio, mas não participou dos 3 a 0 sobre o Liverpool no Mundial.
Em 1982, se transferiu para o Botafogo-SP, cinco anos após chegar ao infanto-juvenil do Flamengo. Esteve em outras seis equipes antes de parar, em 1990, e se mudar para Portugal, onde já atuara.
Vive na localidade de Quarteira, a poucos metros do mar. Pacato, de cabelos grisalhos, acompanha a carreira de dois filhos jogadores de futebol.
Pega jacaré na praia, mergulha, pesca pargos e robalos, diverte-se em peladas. Cidadão de classe média, trabalha na contabilidade de uma escola. Torcia pelo Fluminense na infância. Trocou: ''Quem passa pelo Flamengo fica com o coração rubro-negro''.
Não recomenda que o imitem. Não guarda ressentimento, nem se considera injustiçado. E não disfarça o orgulho pelo épico da Libertadores e até mesmo pelo soco, catártico para a maior torcida do Brasil: ''As pessoas que viveram aquilo nunca vão esquecer''.
Carpegiani reconhece ter dado ordem
Como o sr. se lembra da conquista da Libertadores e do episódio com Anselmo?
O fato com o Anselmo é pequeno, diante da conquista. A responsabilidade foi minha. Pedi para ele entrar e dar o soco. Sou grato, porque o jogador me atendeu. Depois a direção não queria levá-lo ao Mundial. Bati o pé para ele ir.
O sr. sempre assumiu a ordem.
Pediram para eu dizer que não ordenara. Mas a responsabilidade foi toda minha. Fato negativo, mas ocorreu, em função da partida anterior.
Aos 57 anos o sr. mandaria um atleta fazer o que mandou aos 32?
Não. Aquilo foi num momento quente. Não tenho arrependimento, só que não faria de novo. E repudio quem fizer.
O agressor foi a vítima, diz agredido
Em novembro de 1981, Mario Soto tinha 31 anos e era o ''xerife'' do Cobreloa. A voz afável nada tem a ver com o lugar-comum associado a um vilão. Ele diz que o soco de Anselmo não o atingiu no estádio Centenário, ao contrário do que dizem testemunhas diversas.
O Flamengo reclamou da sua violência já no segundo jogo, em Santiago.
É como se jogava a Libertadores naquele tempo. O Cobreloa jogou como deveria.
O que o sr. lembra da agressão de Anselmo?
No campo pode ocorrer tudo. O ruim é que foi agressão programada. Pelo que sei, no hotel.
Carpegiani assume a ordem, mas no fim do jogo.
Tiro toda a responsabilidade do jogador. Anselmo foi vítima da decisão de Carpegiani.
Como foi?
Eu estava na metade do campo, e o nosso goleiro gritou ''cuidado!''. Anselmo não chegou a me acertar. A única ação antidesportiva foi a de Carpegiani. A mim não causou dano. Causou ao Anselmo.
(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 29/10/2006)