Na várzea, a tragédia do Chile
Mário Magalhães
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As ruas de Santiago fervilham na reta final do governo da Unidade Popular, antes do golpe comandado pelo general Pinochet e patrocinado pelos EUA em setembro de 1973. ''Allende, Allende, o Chile não se vende'', gritam nas passeatas da oposição. ''Allende, Allende, o povo te defende'', retrucam os partidários da coalizão liderada pelo socialista Salvador Allende.
A tensão não é menor em uma escola de elite. Um padre gringo, desses humanistas das antigas, inventou de abrir vagas gratuitas para pobres.
No colégio religioso, exclusivo para meninos das melhores famílias, o filho da madame passou a estudar ao lado do filho da lavadeira. Um dos alunos bem nascidos se chama Andrés Wood. No futuro, terá duas paixões: cinema e futebol.
Das memórias de criança, Wood fez ''Machuca'', em cartaz no Brasil. O filme começa com Gonzalo Infante vestindo o uniforme de almofadinha, com gravata e blazer. Naquele dia, o padre Mc Enroe apresenta os colegas molambentos. Um deles, Pedro Machuca, está com seu único pulôver, furado, um furo que mesmo cerzido acaba sempre por se impor.
“Machuca” conta a história de dois amigos que se despedem da infância e a amizade entre quem mora numa casa bacaninha e num barraco sem esgoto. Mostra o que o Chile poderia ter sido e não foi.
A palavra ''fútbol'', que eu tenha notado, não é pronunciada. Mas o futebol pontua o estado da alma. Na primeira vez que o sardento Gonzalito dá carona de bicicleta para o descendente de índios Machuca, eles atravessam um campo de areia, na entrada da favela. Numa das traves, garotos jogam uma pelada. O travessão de madeira, cansado, faz barriga para baixo.
Quando o golpe irrompe, Gonzalo vai à favela saber da sorte do seu chapa. No campo, veem-se apenas os restos de uma fogueira que já ardeu. Perto dos barracos, o menino assiste à tropa matando, leva um empurrão de um soldado e cai fora com lágrimas a cobrirem-lhe o rosto.
Tempos depois, ele pedala de volta. Desapareceu a favela que ficava além do campinho e aquém da cordilheira. Ninguém bate bola, ninguém mora mais ali. O Chile se transformou numa imensa cancha de futebol vazia.
Naquela época, o Chile me dizia duas coisas: fora lá que Garrincha ganhara a Copa de 62. E de lá viera o melhor zagueiro que eu conheceria, o Figueroa. Mais velho, descobri que foi onde fizeram, do maior estádio, um campo de concentração, tortura e morte.
Andrés Wood dirigiu o filme ''Histórias de Futebol''. Não vi, mas não me surpreenderei se nele o futebol não disser tanto como em ''Machuca''. Numa das últimas sequências, o padre Mc Enroe, corrido do colégio e substituído por um militar, come todas as hóstias, para não deixar nenhuma. ''Este já não é um lugar sagrado'', lamenta. Como o campo de várzea, na tela, e o estádio Nacional, na tragédia chilena.
(Mário Magalhães, “Folha de S. Paulo”, 21/01/2005)