Bloqueado pela censura, o ‘JB’ saiu sem manchete sobre o golpe no Chile
Mário Magalhães
A primeira página do “Jornal do Brasil” de 12 de setembro de 1973 é um dos momentos mais criativos e altivos do jornalismo nacional. Qualquer faculdade que se preza transmite lições com base naquela edição.
Desde 1964 o Brasil vivia a sua ditadura. Censores oficiais davam plantão em muitas redações, decidindo que assuntos poderiam ser noticiados, e como.
Então editor-chefe do “JB”, Alberto Dines contou ao “Jornal da ABI”, em 2012, como tudo se passara:
“Uma das causas da minha saída do JB, em 1973, foi porque eu forcei isso. Quando houve o golpe militar no Chile, veio a ordem da censura para não dar manchete sobre a derrubada do Salvador Allende. Mas a ordem chegou tarde da noite e o Allende estava na manchete! A essa altura, eu já não fechava o jornal. Nós decidíamos a primeira página e eu ia para casa. Já me dava esse direito. O Lemos também já tinha saído e quem ligou foi o Maneco Bezerra [da Silva], excelente jornalista que trabalhava na oficina. Ele alertou da ordem e fui imediatamente para lá. Morava em Ipanema, pegava o Aterro [do Flamengo] e era fácil chegar ao prédio novo do JB naquela hora, quase 11 horas. Quando cheguei um dos superintendentes do jornal já estava lá, mas ele não se meteu. E aí eu falei: ‘Vamos obedecer. Não vamos dar na manchete. Vamos fazer um jornal sem manchete! Vamos contar a história com o maior corpo possível da Ludlow…’ esse era corpo 24, se não me engano… Contamos a história toda e ficou, digamos, um pôster sem manchete. O superintendente do jornal me perguntou: ‘Dines, você tem certeza mesmo que quer fazer isso?’. E eu respondi que nós estávamos obedecendo às autoridades. No dia seguinte o Armando Nogueira, que estava na TV Globo, me telefonou logo cedo: ‘Porra! Isto é uma revolução!’. A direção não criticou nem elogiou. Quem elogiou foram os bons jornalistas. A capa está reproduzida em um livro que organizei, Cem Páginas Que Fizeram História, com a reprodução de outras páginas importantes de vários jornais. Mas a verdade é que três meses depois eu fui demitido por ‘indisciplina’.”
No site do “Observatório da Imprensa”, o colega Mauro Malin contou a história daquela primeira página. Seu texto, “A mais antológica das capas”, pode ser lido aqui. Foi nele que eu pesquei o parágrafo acima.
Se o “JB” saísse com um título insípido, o efeito seria muito menor do que o de um jornal sem manchete. É possível que mesmo a manchete mais incendiária não tivesse temperatura tão alta quanto a o diário sem cabeça, constrangido pela censura.
Sempre tive curiosidade de saber, afinal, qual seria a manchete, se o representante da ditadura não tivesse encrencado. Mandei um e-mail para o Dines, decano do jornalismo brasileiro, camisa 10 do “Observatório”, e perguntei.
Havia duas opções. Eis a resposta:
“A manchete mais objetiva seria: ‘Golpe derruba e mata Allende’. Se tivesse duas linhas poderia ser: ‘Golpe militar derruba e mata Salvador Allende’.”
“Quarenta anos depois, a manchete mais completa é: ‘Allende morto, nós censurados’.”
“Georges Clemenceau, que fez a manchete mais curta e mais célebre da história do jornalismo ( ‘J’Accuse…’), poderia nos socorrer com algo mais retórico e francês.”
Nós, jornalistas, que sofremos com nossas barbeiragens, reveses e frustrações, também temos grandes histórias para contar.