Blog do Mario Magalhaes

Manifesto pede fim da censura às biografias

Mário Magalhães

Nos anos 1960, na ditadura, artistas protestavam contra a censura

 

( Para seguir o blog no Twitter: @mariomagalhaes_ )

Seria mais ou menos como, na Alemanha, proibirem ainda hoje biografias críticas ao Hitler, se alguma sobrinha perdida do genocida acionar a Justiça alegando invasão à privacidade do falecido.

É o que vigora no Brasil, com a interpretação da lei que tem priorizado o legítimo direito à privacidade, em detrimento do legítimo direito à informação. Ninguém propõe um vale-tudo, tanto que o recurso ao Judiciário permite buscar a devida reparação às vítimas e a punição a quem fere direitos. Inadmissível é censura prévia, coisa de ditadura.

No sábado à noite, o Ruy Castro leu na Bienal do Livro do Rio um manifesto contra a censura às biografias, como noticiou aqui no UOL a colega Fabíola Ortiz (leia aqui).

Publico a íntegra do manifesto e seus primeiros signatários, entre os quais me incluo.

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Manifesto dos intelectuais brasileiros contra a censura às biografias

Desde o século XIX, a Biografia teve papel importante na construção da nossa ideia de Nação, imortalizando personagens e ajudando a consolidar um patrimônio de símbolos e tradições nacionais.

Mais recentemente, na segunda metade do século XX, a Biografia ganhou outra dimensão: além de relatar os feitos dos grandes nomes, transformou o personagem em testemunha de sua época.  A Biografia moderna não é só a história de uma pessoa, mas também de uma época, vista através da vida daquela pessoa.

No Brasil, tal forma de manifestação encontra-se em risco, em virtude da proliferação da censura privada, que é a proibição das biografias não autorizadas.

A ninguém é dado impedir a livre expressão intelectual ou artística de outro, garantia consagrada na Constituição democrática de 1988, que baniu definitivamente a censura entre nós. Por isso, não faz sentido exigir-se o consentimento prévio da personalidade pública cuja trajetória um autor ou historiador pretende relatar (e, menos ainda, exigir-se a autorização de seus familiares, quando já falecido o biografado), como condição para a publicação de Biografias.

É apropriado que a lei proteja o direito à privacidade. Mas este direito deve ser complementado pela proteção do acesso às informações de relevância para a coletividade, na forma de tratamento distinto nos casos de figuras de dimensão pública, os chamados protagonistas da História: chefes de Estado e lideranças políticas, grandes nomes das artes, da ciência e dos esportes.

O Brasil é a única grande democracia na qual a publicação de Biografias de personalidades públicas depende de prévia autorização do biografado. Um país que só permite a circulação de biografias autorizadas reduz a sua historiografia à versão dos protagonistas da vida política, econômica, social e artística. Uma espécie de monopólio da História, típico de regimes totalitários.

Este erro produz efeito devastador sobre a atividade editorial. A necessidade do consentimento prévio das pessoas retratadas nas obras cria um balcão de negócios de valores vultosos, em que informações sobre a nossa História são vendidas como mercadorias.

Há um efeito ainda mais grave no que tange à construção da memória coletiva do país. O conhecimento da História é um direito da cidadania, independentemente de censura ou licença, do Estado ou dos personagens envolvidos. O ordenamento jurídico deve assegurar pluralidade, cabendo à sociedade e ao cidadão formarem livremente sua convicção.

É pertinente lembrar que a dispensa do consentimento prévio do biografado não confere ao autor imunidade sobre as consequências do que escrever. Em casos de abuso de direito e de uso de informação falsa e ofensiva à honra, a lei já contém os mecanismos inibidores e as punições adequadas à proteção dos direitos da personalidade.

Hoje, quando a sociedade clama pela ética e pela plena liberdade de expressão, está mais do que na hora de eliminar este entulho autoritário e permitir novamente que os brasileiros possam ter acesso à sua própria História.

Assim, os intelectuais brasileiros apoiam as iniciativas legislativas e judiciais voltadas à correção dessa anomalia do ordenamento jurídico brasileiro, de maneira a permitir a publicação e a veiculação de obras biográficas sobre os protagonistas da nossa História, independentemente da autorização dos personagens nelas retratados.

Assinam:

Afonso Arinos de Mello Franco

Alberto Costa e Silva

Alberto Venâncio Filho

Alexei Bueno

Ana Maria Machado

André Amado

Antônio Carlos Secchin

Antonio Torres

Arnaldo Niskier

Boris Fausto

Candido Mendes de Almeida

Carlos Heitor Cony

Carlos Nejar

Celso Lafer

Cícero Sandroni

Cleonice Berardinelli

Cristovão Tezza

Domício Proença Filho

Eduardo Portella

Evanildo Bechara

Fernando Morais

Ferreira Gullar

Geraldo Holanda Cavalcanti

Ivan Junqueira

João Máximo

João Ubaldo Ribeiro

Jorge Caldeira

José Murilo de Carvalho

Lira Neto

Luis Fernando Veríssimo

Manolo Florentino

Marco Lucchesi

Marcos Vilaça

Mário Magalhães

Mary del Priore

Merval Pereira

Milton Hatoum

Murilo Melo Filho

Nélida Piñon

Nelson Pereira dos Santos

Roberto da Matta

Roberto Pompeu Toledo

Rosiska Darcy de Oliveira

Ruy Castro

Sergio Rouanet

Silviano Santiago

Ziraldo

Zuenir Ventura