Blog do Mario Magalhaes

Milagres de Francisco e a falta que faz um jingle como o do João de Deus

Mário Magalhães

( Para seguir o blog no Twitter: @mariomagalhaes_ )

Na calçada defronte ao Copacabana Palace, onde noutro dia o pau comeu no casamento da Dona Baratinha, desfralda-se uma faixa da Pastoral da Aids. Encuco com a surpresa: se a Igreja se opõe ao uso da camisinha, o que proporiam obedientes fiéis? É o que indago a uma jovem, que me encaminha a uma senhora atrás da faixa, pena que ela não apareça na foto acima. E a prevenção com preservativo?, provoco.

A tarde desta quinta-feira da Missa da Acolhida começou mais cedo. Eu havia lido no jornal e ouvido na TV que poderia entrar de carro em Copacabana até as duas da tarde. Pela uma e meia, na garagem, ligo o rádio do automóvel, e o locutor informa que as entradas do bairro já estão interditadas. Logo saberei que o jornal e a TV estavam certos, mas a culpa foi minha, repórter negligente: quem mandou não apurar direito?

O palco da Jornada Mundial da Juventude não fica tão distante de Botafogo, e resolvo ir a pé. Na rua São Clemente, a estação do Metrô está fechada, e muitos peregrinos dão com a cara na porta.

Na Voluntários da Pátria, mais de cem garotas e garotos com camisas verdes do evento se enfileiram para subir num ônibus cujo destino é a rodoviária, e não o Leme e Copacabana, onde Francisco desfilará no papamóvel e falará aos católicos. Não entendi.

Trancado até pouco antes em casa, escrevinhando uma carta ao papa, não havia olhado a primeira página da maioria dos jornais.  Numa banca, deparo-me com as broncas. “Rio passa vergonha”, manchetou o “Extra”. “Peregrinos têm dias de purgatório”, torpedeia “O Dia”.

Na rua Góis Monteiro, um moço abatido pela angústia topa com um conhecido e desabafa: fiquei uma hora na fila! Fila de quê?, matuto, até perceber que ele veste uma camisa do Botafogo. Deve ter comprado ingresso para o clássico de domingo no Maracanã.

Mais alguns passos e vislumbro uma janelinha de andar baixo num prédio, e memórias pagãs me inebriam. Quase duas décadas atrás, namorei uma jornalista que morava ali, bem diante do ponto de ônibus. De madrugada, a barulheira principiava, ela se preocupava com o incômodo, e eu dizia não é nada, meu amor. Era o que a Fátima Guedes chama de pobres mentiras diplomáticas, de puras intenções. O que não faz uma paixão…

Milagres de Francisco

Antes de atravessar o Túnel Novo, aborda-me o primeiro ambulante vendendo capas de chuva por R$ 5 a unidade. Mais tarde, constatarei um milagre de Francisco: em qualquer lugar da praia, todos os camelôs cobram o mesmo preço. No cotidiano do Rio, quanto mais metido a besta o ponto, mais caro o produto. É o que acontece com o coco.

Na avenida Princesa Isabel, dou com a multidão. Até a noite, verei bandeiras de tudo o que é país, incluindo Israel, China e outros que não reconheço. “Será que o Rio já recebeu tanta gente de fora?”, pergunta um rapaz a outro. Como não é comigo, calo, mas acho que não.

Testemunho uma batalha malsucedida de muitos jovens. Como a avenida Atlântica foi dividida cedo pelas grades que isolam a pista no sentido do Leme, via que o papa percorrerá, quem chega agora não consegue passar para o calçadão, no lado da areia.

Não é nenhuma agremiação carioca a que ostenta mais bandeiras, e sim o Clube Atlético Mineiro, que poucas horas atrás conquistou a Libertadores. É um escudo abençoado o do Galo, mas quem está precisando de bênção é o do Flamengo, que quase não vejo. Ainda ignoro que de manhã o Zico presenteou Francisco com o manto sagrado. O papa, torcedor do San Lorenzo, conheceu o Deus rubro-negro.

Mesmo com o frio de 13 graus, a confiar em um termômetro do canteiro central, não flagro ninguém fazendo xixi na rua. Centenas de pessoas aguardam pacientemente nas filas dos banheiros químicos. Novo milagre de Francisco.

No Bar Balcony, embora algumas garotas de programa tenham preferido se ausentar do batente, belas da tarde pelejam em busca de clientes. São as filhas de Deus com quem estive na madrugada da segunda-feira.

Se tencionava promover uma demonstração de força, a Igreja consegue. O rebanho mingua na América Latina, mas permanece numeroso. “Quantas divisões têm o papa?”, zombou Joseph Stálin. Nenhuma, mas aqui perfilam soldados da fé.

Mais de uma vez escuto o verbo “glorificar”, e a confraternização comove.  Observo hábitos, batinas, paramentos. Desconfio de que alguns pertencem a ordens mendicantes, mas a minha ignorância na matéria impede certezas.

No entanto, o clima não parece tão empolgante como a da viagem do papa João Paulo 2º, em 1980. Falta um jingle como “A bênção, João de Deus”. Aquela canção simbolizou a hospitalidade nacional, e a torcida do Fluminense a adotou para sempre. Os organizadores não vacilaram apenas com o trânsito, o metrô e o lamaçal da Cidade da Fé, a que foi sem nunca ter sido. Deveriam ter encomendado um jingle-chiclete como o de outrora.

Passa o papa

Cantarolo na cabeça o velho jingle quando caminhonetes do Batalhão de Choque me ultrapassam. Mais um milagre de Francisco: faz semanas que elas não surgem no Rio sem o afã de sufocar multidões.

Por pouco não tropeço em pedras soltas nas calçadas, mas para banir essa maldição, que derruba da Beatriz Segall a pedestres anônimos, nem o papa.

O protesto só viria à noite, quando manifestantes deixariam os arredores do apartamento do governador, no Leblon, e dariam seu recado em Copacabana. No momento, não há sinal de mensagem política. Será que João Paulo II, Bento 16 e Francisco triunfaram? Findaram os tempos das Comunidades Eclesiais de Base? Onde estão elas?

A bem da verdade, esbarrei, sim, em um grupo ostensivamente politizado. Chilenos, cantavam contra a “opressão”. Junto com um estandarte de sua paróquia e uma bandeira da nação de Allende e Neruda, balançavam outra, de Ernesto Che Guevara, compatriota do cardeal Bergoglio, agora sumo pontífice.

Tento me aquietar em um canto para ver o papa, que se aproxima. Com espírito nada cristão, um brucutu brasileiro empurra vizinhos. Francisco passa rapidinho, e há tanta gente que boa parte nem o vê. Isso mesmo: não é que eu não tenha encontrado o papa, nem mesmo o vi. Quer dizer, só o vi no telão. “Ele passou como um flash”, conta uma mulher ao telefone. “Não importa, foi demais.”

No caminho de volta, quando o papa já deve estar jantando, ocorre-me outro milagre de Francisco: sumiram os mendigos da beira-mar. Ou seja, devem ter sido retirados de lá, para maquiar as nossas misérias. Mas já estão deitados nas calçadas da rua Tonelero e dentro do Túnel Velho. Não se trata de retórica o que o papa fala sobre a pobreza.

É literalmente quilométrica a fila na estação do metrô Siqueira Campos. Gaiatos peregrinos não resistem e entoam: “Meu irmão/ Não desiste/ Não parece/ Mas o fim da fila existe”.

Pouco além da saída do túnel, colados ao muro do cemitério São João Batista, centenas de pessoas fotografam o Cristo Redentor. Enfim, parou de garoar, as nuvens decolaram, e o Corcovado se descortinou no horizonte.

Lembro-me da senhora da Pastoral da Aids, de quem eu esperava uma peroração dogmática submissa aos preceitos do Vaticano, cuja política sobre o HIV resulta em mortes mundo afora.

“E a prevenção com preservativo?”

Ela respondeu de bate-pronto:

“Isso é questão de saúde pública!”  Em outras palavras, tem que usar.

Espantado, sapequei-lhe um beijo na bochecha e parti.