Blog do Mario Magalhaes

Vinte anos nesta meia-noite (ou uma crônica contra o esquecimento)

Mário Magalhães

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Um sino da Candelária badala, mas não dobra por ninguém. O som anuncia a meia-noite de 22 de julho de 2013, ou zero hora do dia 23. Vinte anos atrás, diante das marquises de prédios ao redor da igreja, assassinos desceram de dois Chevettes e abriram fogo contra uns 70 sem-teto que tentavam descansar no inverno carioca. Mataram oito meninos de rua e mendigos. O mais velho tinha 19 anos. O mais novo, 11.

É meia-noite aqui na praça Pio X, e eu não vejo viva alma, nem flores, nem vela. Uma cruz de madeira que já perdeu lascas de tinta, monumento simples como eram aqueles mortos, testemunha a passagem do tempo. Nela estão inscritos os nomes dos desgraçados que ficaram para trás.

Ando um pouco e vislumbro três seres humanos que parecem dormir. Sob a marquise de um edifício, como os moleques no passado, uma mulher se cobre com um lençol estampado claro, que oferece a vantagem de contrastar com sacos pretos que os lixeiros carregarão. Ninguém a arremessará no caminhão por engano.

Na porta da extrema esquerda da fachada da igreja de estilo colonial e neoclássico, construída de 1775 a 1811, um homem deita coberto por papelão. Ao seu lado, abaixo de uma janela, outro miserável se agasalha com um cobertor cinza escuro.

Resisto à tentação cretina de despertá-los para conversar e parto em busca da memória. Uma placa para turistas divulga “fatos históricos” do templo portentoso: “Nas pinturas e fotografias do início do século [XX], destacou-se em relação às outras construções, pelo seu talento e estilo”.

Nada sobre o episódio eternizado como Chacina da Candelária. Nem a respeito da jornada de 1968 em que os cavalarianos, com talento repressor e estilo furioso, atacaram os cidadãos na saída da missa em homenagem a um estudante morto pela ditadura.

Dou a volta na igreja e no ponto de táxi próximo à avenida Rio Branco abordo um motorista com 18 anos de profissão. Para não inibi-lo, descarto perguntar por seu nome. Falo do massacre dos garotos, e ele de fato não se inibe.

“Garotos?”, ironiza.

“Sim, 11, 13 anos, eram garotos.”

“Sabe por que morreram?”, ele indaga, como quem cultiva um segredo.

“Não morreram, foram mortos”, corrijo. E o questiono sobre o motivo.

“Pesquisa”, tripudia o taxista.

Insisto, e ele especula:

“Derrubaram a mãe de alguém.”

“Justifica?”, retruco.

“A toda ação corresponde uma reação”, ele pontifica.

Nunca se soube ao certo o que despertou a ira da turma de matadores vinculada à Polícia Militar. Falaram que os pivetes teriam roubado e agredido a mãe ou mulher de um PM. E apedrejado um carro da corporação, bronqueados com a detenção de um amigo que cheirava cola.

O certo é que sobreveio a vingança, da qual o Brasil tomou conhecimento no amanhecer de 23 de julho de 1993. “Estou horrorizado”, declarou o presidente Itamar Franco. “É uma provocação sem precedentes à sociedade”, interpretou o sociólogo Betinho. O governador Leonel de Moura Brizola não afinou: investigar a PM “é o ponto de partida”.

De regresso à praça Pio X, lembro-me da visita do papa João Paulo II ao Rio em outubro de 1997, quando um ato público rememorou a chacina. A professora Sandra Cavalcanti, então secretária municipal, opôs-se. Alegou que não queria chamuscar a efusiva recepção ao pontífice com a evocação de uma tragédia.

Nesta meia-noite, o papa Francisco descansa em “terra carioca”, expressão que ele empregou no Twitter. E aqui, na praça com o nome de outro papa, eu avisto um garoto negro baixo e forte carregando três enormes sacos abarrotados de garrafas plásticas. Ele vem da rua Primeiro de Março e caminha rumo a um ferro velho nas cercanias da Central do Brasil. Receberá 50 centavos por quilo. Estima ter recolhido de 20 a 30 quilos. Batizado com nome de poeta, Vinicius tem 13 anos. Diz que ouviu “muita coisa” acerca do que ocorreu ali quando ele nem nascera.

“Você não tem medo de andar a essa hora por aqui?”, pergunto.

“Medo eu tenho, mas tenho que trabalhar.”

Morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Vinicius não estuda. Largou a escola na quinta série. O que é um obstáculo para alcançar o sonho que exige, ele esclarece, ensino médio:

“Eu queria mesmo era ser bombeiro”, conta, escancarando o sorriso.

Não demora e outro jovem negro passa com um saco quase vazio. Ele tenta recolher algum resto na lixeira defronte à igreja, mas sai de mãos vazias. Perto dos três degraus à beira da porta principal, que está fechada, o cheiro de urina se intromete pelas narinas. A alguns passos, a tinta vermelha-cor-de-sangue com o contorno de oito corpos, desenhados há anos em um protesto, ainda tinge a calçada de pedras portuguesas.

Como Vinicius e o catador de lixo, os mortos da Candelária eram pobres, negros e mestiços. Dos 70, 44 viriam a ser mortos de forma violenta, incluindo os oito da madrugada inominável. Embora acusados tenham sido condenados a séculos de reclusão, ninguém mais está preso. Como recordou o amigo Sergio Torres, um coitado pegou cana de três anos por coautoria da matança. Foi engano, ele era inocente.

Outras carnificinas trouxeram mais cadáveres, como a de Vigário Geral e a de Eldorado do Carajás. Com elas, as imagens da Chacina da Candelária foram se desbotando a cada inverno. Na semana passada, celebrou-se missa e promoveu-se manifestação aqui na cidade. Há promessa de outro ato para hoje. Avisaram que em Fortaleza também. Que assim seja, lembremos para não esquecer. Nós nos debruçamos sobre o passado para decidir o futuro. Se a impunidade e a injustiça prevalecem atrás, persistirão à frente.

O tempo e o esquecimento embaralham a memória. Dois dos maiores jornais brasileiros informam que os garotos foram fuzilados no fim da noite de 23 de julho de 1993, mas o terror principiou na virada de uma quinta-feira, 22 de julho, para a sexta, 23. Deflagrado por volta da zero hora, continuou, porque algumas vítimas foram sequestradas e executadas em seguida.

Faz umas duas horas que estiou aqui na Candelária, mas a água da chuva ainda molha as ruas e o gramado da praça. A temperatura cai com a noite, confirmando a previsão dos meteorologistas. Daqui a pouco, haverá 20 anos da tarde em que a mãe de Paulo Roberto Oliveira, uma criança de 11 anos, reconheceu o corpo do filho no Instituto Médico Legal.

Badala o sino, e para mim ele dobra pelos nomes que eu leio na cruz. Um tinha o nome de Cristo, de outro só sobreviveu o apelido. Pretos, pobres, cheiradores de cola, pequenos delinquentes. Eram meninos do Brasil:

Paulo R. Oliveira

Anderson O. Pereira

Paulo J. Silva

Marcos A. Alves Silva

Leandro S. Conceição

Valdevino M. de Almeida

Gambazinho

Marcelo C. Jesus

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